Lívia de Souza Vieira
Doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS
Tentou contra a existência
num humilde barracão,
Joana de tal, por um tal João.
Depois de medicada, retirou-se pr’o seu lar.
Aí a notícia carece de exatidão.
Um lar não mais existe
e ninguém volta ao que acabou.
Joana é mais uma mulata triste que errou.
Errou de dose,
errou de amor.
Joana errou de João,
Ninguém notou.
Ninguém morou na dor que era seu mal,
A dor da gente não sai no jornal.
(Notícia de Jornal, de Haroldo Barbosa)

Estudantes lutando por suas escolas. Assim têm sido as últimas semanas em São Paulo, desde que o governo Alckmin anunciou a intenção de fechar 92 escolas estaduais, remanejando cerca de 300 mil alunos. Já são 81 ocupadas por professores, alunos, pais e representantes de movimentos sociais. Portanto, estamos falando de um acontecimento cheio de tensão, com alto critério de noticiabilidade e grande potencial de engajamento nas redes sociais.
É nesse contexto que, na tarde de ontem (19), o jornal Folha de S. Paulo informou que “Gestão Alckmin suspende fechamento e reorganização de escolas em 2016”.


Como era de se esperar, a notícia gerou grande repercussão nas redes sociais, muitas em tom de comemoração pela vitória dos estudantes.

No perfil no Twitter da Folha de S. Paulo, a notícia teve mais de 200 retweets e 140 curtidas.

Imediatamente, outros veículos e blogs (como o site Pragmatismo Político e o portal Bem Paraná) começaram a replicar a notícia, citando como fonte a Folha de S. Paulo.


Erramos
Horas depois, o jornal atualizou a notícia com uma errata. Foram alterados título e lead, além da inclusão, no pé da matéria, de um ‘erramos’. O destaque passou a ser “Gestão Alckmin oferece suspender fechamento de escolas em troca de desocupações”, e a errata informava que a suspensão seria temporária. O lead da notícia, atualizado, é ambíguo, pois afirma que o governo de SP “pode suspender temporariamente” a decisão de fechar as escolas. Ou seja, de uma manchete que afirmava a suspensão, passamos a ter uma possibilidade de suspensão temporária.
Outros veículos jornalísticos, como o jornal Zero Hora, replicaram a informação, com o mesmo título dado até então pela Folha de S. Paulo:

Para além do erro em si, chama atenção a forma como a Folha se refere às ocupações. O jornal as trata como ‘invasões’, inclusive destacando essa palavra em um dos entretítulos da matéria. Parece ser nítida a intenção do veículo de se referir aos alunos como invasores, mesmo sendo as escolas onde eles próprios estudam.
A essa altura, a informação de que a notícia estava errada começou a circular nas redes sociais. No Twitter da Folha, no entanto, não foi publicada nenhuma retificação (até as 22h30 do dia 19). No Facebook, o jornal editou o post destacando o ‘Erramos’. Houve mais de 4.000 compartilhamentos, muitos deles enfatizando a ‘vitória’ dos estudantes, com base na informação errada. Para esses, a imagem compartilhada ainda contém o título e lead incorretos, fazendo com que a informação errada continue circulando.

Chama a atenção também o número de comentários negativos nesse post da Folha. Os dois destacados abaixo criticam diretamente o jornal e têm, juntos, mais de 800 curtidas.

Erro ou manobra?
Ativistas e portais independentes começaram a questionar se a notícia foi mesmo um erro ou uma manobra da Folha de S. Paulo em favor do governo de Alckmin, para desmobilizar as ocupações.


Até memes foram feitos, chamando atenção para o erro da Folha:
Mais alterações
Horas depois, a Folha mudou novamente o título da notícia para “Gestão Alckmin faz proposta para alunos desocuparem escolas”. Agora, o jornal enfatiza não mais a possível suspensão do fechamento das escolas, mas uma ‘ação’ do governo para que os alunos as desocupem. No entanto, o lead permanece o mesmo, o que torna a matéria confusa, como no trecho abaixo:
A correção de erros no jornalismo online
Em minha dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da UFSC, propus parâmetros éticos para a correção de erros no jornalismo online. Durante toda a pesquisa, identifiquei o que acabei de detalhar neste texto: veículos jornalísticos agem muito mal quando cometem erros na internet e não se preocupam com a circulação da informação incorreta mesmo após a retificação. Alguns decidem até excluir a informação, como foi o caso da Revista Exame:

No entanto, se digitarmos no Google o primeiro título dado pela Folha de S. Paulo, encontramos ainda diversos resultados com a informação incorreta. Ou seja, apagar o rastro de um erro na internet, definitivamente, não funciona.

Para além da retificação, a Folha de S. Paulo precisa fazer circular a informação correta. Quem segue o jornal no Twitter, por exemplo, não recebeu a errata. Quem compartilhou no Facebook e não voltou à página do jornal, idem.
Os erros jornalísticos podem afetar reputações, levar à incompreensão dos fatos, disseminar falsos julgamentos e preconceitos, e até mesmo provocar incertezas sociais e crises institucionais. Apesar desse perigo, como vimos nesse episódio, as organizações jornalísticas – se comparadas a de outros ramos – pouco fazem para desenvolver mecanismos mais efetivos de identificação de erros, retificação, controle e redução de danos. O cenário se torna mais agudo na internet, com os veículos que não só oferecem uma grande quantidade de conteúdos, como o fazem de forma apressada, com equipes enxutas e em condições propícias ao erro.
Ryan Holiday chega a dizer que “correções online são uma piada”. Segundo ele,
Erro factual é apenas um tipo de erro – talvez o tipo menos importante. Uma história é feita de fatos e, é a convergência desses fatos que cria uma notícia. Correções removem os fatos da história – mas a história e suas consequências continuam. Mesmo jornalistas avessos a reconhecer seus erros, mas que o fizeram, somente nas circunstâncias mais raras seguem completamente a lógica: um fato problemático que se mostra incorreto exige que se reexamine as premissas elaboradas a partir dele. Em outras palavras, não precisamos de uma atualização; precisamos de uma reformulação.(HOLIDAY, 2012, p. 189)
Portanto, ao tratar de erro, estamos refletindo sobre a ética profissional e sobre as responsabilidades do jornalismo na mediação dos acontecimentos do presente. A qualidade dessa mediação depende intrinsicamente da reflexão sobre os procedimentos de apuração, edição, publicação e circulação da retificação. Sem isso, as correções online continuarão sendo uma grande piada – e de mau gosto.
Referência
HOLIDAY, Ryan. Acredite, estou mentindo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2012.
Críticas à Folha há muitas. Especialmente à maneira como aborda erros, que são vários, e cada vez mais frequentes com o sucateamento da redação. Mas há de se pensar: você ouviu o jornal antes de publicar essa “análise”, “doutora”? Ou faltou nessa aula básica de jornalismo, de ouvir a versão do acusado? Fez alguma apuração antes de reproduzir site a dizer que o episódio tratou-se de uma manobra? Segundo quem? Há alguma fonte, ainda que anônima?
É piada: professor de jornalismo –e publicidade, sabe-se lá como isso pode acontecer –, que pisou numa tal “Folha Dirigida” uma vez na vida –e nunca mais viu uma redação– propondo-se pensar sobre ética, mas que não conhece os procedimentos mais básicos da profissão.
Lembro do padre-poeta Daniel Lima toda vez que vejo a “inteligência” brasileira a cagar regra sobre questões que não conhece de perto e que tangenciou por meio de “estudos” igualmente ruins dos colegas e amigos. Dizia ele: “O intelectual é um urubu/ que se julga vestido/ mas que está nu/ com uma pena de pavão/ enfiada/ no cu”.
Mas deixa pra lá. Até Daniel Lima era, às vezes, permissivo: “Você tem minha bênção para escrever bosta”.
Muito rude, o colega. Uma atitude corporativista, da mesma classe do retrógrado entendimento de que é necessário cursar uma faculdade de jornalismo para se tornar um jornalista.
Congratulo a autora do texto, que bem sabe os “procedimentos básicos da profissão”. O jornalismo brasileiro ainda tem como parâmetro a mítica “imparcialidade”, sendo que qualquer aluno com meio semestre de análise de discurso ou semiótica é capaz de entender que o que vemos publicado tem tanto de imparcialidade quanto uma edição permite: nada.
Não há nada fundamentalmente errado com o jornalismo de opinião. O que é, isso sim, criminoso é fazer passar por fatos imparciais tal opinião.
Como já disseram inúmeros pensadores, mais notórios, mais inteligentes e mais bem intencionados (e muito menos rudes) que qualquer Daniel Lima (autor ou citador): “fatos” são a interpretação dos fatos; a interpretação é o crivo humano, não sendo nem imparcial, nem objetiva, em termos epistemológicos.
Além do mais, convenhamos: dar voz de defesa a um veículo (ou império) de comunicação tão hegemônico quanto negligente (senão patentemente mal intencionado, eticamente) não só é uma futilidade como um contrassenso.
Caro, a análise do produto jornalístico é tão legítima quanto a do processo, sob o ponto de vista da pesquisa. Portanto, não existe a obrigação de entrevistar os jornalistas da Folha. Tenho contatos lá e nenhum deles questionou minha análise. Quanto às ofensas pessoais, não as respondo.