* Entrevista concedida a Lívia de Souza Vieira, doutoranda no POSJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS. Originalmente publicada na Revista Rastros no 21, do Bom Jesus/Ielusc (Joinville – SC).
Em abril de 2015, Francisco José Castilhos Karam atingiu o nível máximo de sua carreira docente ao tornar-se professor titular no curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nestes 31 anos, Karam conciliou por três vezes a docência com a chefia do departamento e coordenou a pós-graduação (mestrado e doutorado). Nesta entrevista, o professor, que é referência na pesquisa sobre ética jornalística, aborda questões centrais para entender a profissão e seus desafios.
Ao mesmo tempo em que defende a especificidade técnica e ética do jornalismo, retomando o projeto de esclarecimento do Iluminismo, Karam questiona se o apelo ético é suficiente para um chamamento à confraternização, ao respeito ao outro. “No fundo, é um projeto de disputa de humanidade. Onde entra o jornalismo? Ele deveria esclarecer e está nessa encruzilhada: como fazer valer aquilo que o gerou como um elemento central contemporâneo de esclarecimento público?”.
O professor ainda enfatiza que a burocracia e o aparato jurídico estão afastando a ideia da universidade como um polo do pensamento complexo e diversificado. Nesse contexto, Karam critica o produtivismo exacerbado, “que não tem a ver com qualidade, mas com alpinismo acadêmico. Não tem a ver com mudar o mundo ou com contribuir para a sociedade”.
Professor, sua carreira se confunde com a própria história do curso de Jornalismo da UFSC. Quais foram os momentos marcantes dessa trajetória?
Entrei na UFSC no dia 12 de março de 1984, num momento de efervescência política na universidade e no Brasil. Era um momento de luta em comum de toda a oposição, aglutinada, na época, no PMDB, mas com muitas correntes internas. O pensamento e a reflexão tinham mais supremacia em relação à questão do fazer. Mas desde aquela época se defendia que a visibilidade do jornalismo se dá por meio da sua produção. Como o jornalista não é um filósofo, ele tem que ter a práxis, quer dizer, o resultado final do pensamento dele tem que ser por meio de entrevistas, de uma produção laboratorial. Então havia uma preocupação sobre a relação entre pensar e agir. Lutávamos juntos por um pensamento complexo, pela militância política, pelo debate filosófico e pela tentativa de aplicação disso por meio de produtos – naquela época tínhamos era apenas o jornal Zero e um ou outro produto de rádio. Havia uma militância e uma atuação engajada de vários professores dentro de partidos.
O senhor era filiado a algum partido?
Eu primeiro estava filiado ao PMDB, depois me filiei ao PT e depois saí. Mas atuava organicamente num grupo vinculado ao Daniel Herz, Adelmo Genro Filho, Ayrton Kanitz, Luiz Lanzetta, Carlos Muller e Hélio Schuch. Era um grupo que atuava politicamente dentro de correntes no PMDB. Depois alguns de nós permanecemos vinculados ao PRC (Partido Revolucionário Comunista), que tinha no comitê central o Adelmo Genro Filho.
E esse momento se refletia no ensino?
Sim, porque as aulas teóricas eram muito debatidas em torno da filosofia e da ação política. Era um momento de efervescência, de pulsação da vida acadêmica porque também era o fim do regime militar, o fim da ditadura, a luta pelas Diretas Já.
O senhor passou por algum momento dentro da universidade de ação da ditadura, de algum tipo de repressão?
Não, porque naquele momento todos os olhos estavam voltados para a abertura lenta, gradual e irrestrita. Havia uma perseguição um pouco clandestina, não tão ostensiva. Por exemplo, telefonemas que nunca se soube de quem partiu, monitoramento da ação do Adelmo Genro Filho dentro da UFSC, mas já num momento em que havia pouca força para se opor a uma abertura política. Então não houve uma perseguição como a de anos antes, por meio da Operação Barriga Verde, que culminou com a prisão de professores.
O curso tem um histórico de luta pelo reconhecimento do jornalismo como um campo de conhecimento e Adelmo Genro Filho foi um dos teóricos que contribuiu para isso. O senhor, que conviveu muito com ele, acha que hoje suas ideias permanecem válidas?
Há várias teorias do jornalismo. Adelmo propôs um jornalismo que tenciona o modo de produção capitalista. Então, ele propõe, em cima da notícia, a exploração de narrativas que deem mais transparência às contradições de classe, por meio dos próprios fatos. Por isso ele diz que talvez não seja do mais importante para o menos importante, e sim do singular para o universal. Então, nesse aspecto, a proposta dele permanece com uma certa atualidade porque isso seria o fazer jornalístico. A questão é que a teoria que ele propõe hoje concorre com inúmeras outras e com outros fazeres que não necessariamente estão no escopo ideológico que ele propõe. É uma questão de disputa política. Parece-me que tem uma atualidade porque ele, juntamente com Nilson Lage, são os melhores pensadores do jornalismo no país. Eu coloco o Adelmo entre os melhores do planeta, porque a densidade com que ele trabalha a filosofia aplicada ao jornalismo eu poucas vezes vi. O que tenho visto é um conjunto de mediocridades no jornalismo de pensamentos que são descrições, que não envolvem uma epistemologia, uma ontologia, uma análise aprofundada no contexto da filosofia aplicada ao campo. São coisas muito frágeis. O Adelmo vai além. A questão é que o jornalismo mudou bastante, no sentido tanto de sua variedade, de seus formatos, quanto de suas narrativas, a ponto de a gente pensar o que é jornalismo ou não.
O senhor acha que o jornalismo está em crise?
O que acontece, a meu ver, é que há uma crise na forma de exercer o jornalismo tradicional, o modelo de negócios. Mas parece que ainda é importante do ponto de vista ético e do esclarecimento, que as pessoas tenham referências narrativas cotidianas para se situarem na realidade. Nós estamos num outro momento da humanidade, em que nos perguntamos qual é a capacidade de as pessoas prestarem atenção às coisas que se passam? Se elas vivem em determinados grupos tribais, como diz o Maffesoli, se interessam apenas por determinados assuntos, mas não por aquilo que seria mais relevante para o projeto coletivo de humanidade; então elas vivem no império do efêmero, do mutável, do transitório. Porque para que alguém narre tem que ter alguém do outro lado que preste atenção e que se interesse. Então, mesmo a noção de interesse público, que é uma coisa mais forte na Modernidade, teria que ser validada com o público daqui para frente, para ver se ele vai ter interesse em saber aquilo que afeta a sua vida. Talvez isso explique um pouco tanta desorientação em relação ao que se passa. Esse é um problema importante para o jornalismo.
O senhor é uma referência no estudo da ética jornalística. Como isso surgiu na sua vida de pesquisador?
Saí para fazer mestrado em 1989, na USP, sob orientação da professora Cremilda Medina. Ela já tinha essa preocupação. Mas como eu tinha que escolher um tema, decidi pela ética, talvez um pouco pela experiência profissional na Rádio Guaíba (RS), como correspondente do Diário do Sul, na revista Nova Escola, muitos freelas também para a Veja, para a Isto É. Além disso, como o Adelmo tinha lançado o livro Teoria do Jornalismo, escolhi um tema que era desde o início a especificidade ética do jornalismo na universalidade humana. Fui lendo e me interessando por esse assunto que é por vezes árido, mas comecei a ver que é central para o jornalismo.
E é o que o senhor defende, essa especificidade ética do jornalismo?
Sim, que existe uma especificidade. Por exemplo, o Cláudio Abramo disse, em ‘A regra do jogo’, que a ética é uma só. Ele tem razão no geral, mas é insuficiente. A frase dele é adorada pelos empresários, pois se é a mesma ética, não tem nada para estudar ou refletir. Mas e a câmera oculta, pode ou não? Para um pipoqueiro a câmera oculta não tem muito sentido, mas para o jornalismo tem. Há uma série de valores jornalísticos aplicados no exercício da profissão, que são deontológicos, do dever ser profissional, que por trás tem um fundamento teórico-ético. Está relacionado ao surgimento da profissão, à noção de esclarecimento, ao espaço público, à Modernidade, ao quarto poder ou contrapoder do jornalismo em relação aos outros três (Legislativo, Executivo e Judiciário). Tudo isso exige e credencia o jornalismo a determinadas atitudes decorrentes desses valores que, em resumo, acabam na prática profissional. O jornalismo tem direito ao sigilo da fonte em relação a outras profissões, tem que ter certos cuidados com a privacidade, precisa se basear na verossimilhança, na verdade e na exatidão. Um compromisso com a verdade que não precisa ter um literato, por exemplo. Tudo isso faz com que haja uma necessidade de se debruçar sobre aquilo que é específico da profissão e naquilo que é universal em todos os outros. Então essa foi minha defesa no mestrado, que virou livro em 1994 (‘Jornalismo, ética e liberdade’, que em 2014 teve a quarta edição atualizada pela Summus).
E sua pesquisa no doutorado?
Em 1996, quando entrei no doutorado, sob orientação do professor Norval Baitello Junior, na PUC-SP, mudei um pouco o foco e fui estudar o cinismo empresarial ético. Peguei tudo o que está dito nos códigos das empresas e apliquei a algumas matérias. E aí vi que há uma distância muito grande entre aquilo que está escrito e a cobertura jornalística. Só que analisei mais editoriais, para trabalhar com o conceito de razão cínica, um tema que vários autores vinham estudando na contemporaneidade. Há uma razão cínica contemporânea no final do século XX, um cenário que é o que o Jurandir Freire Costa disse, há quase 30 anos, que está sendo tomado por um quarteto muito perigoso, que pode nos levar a um ponto de não retorno: o cinismo, o narcisismo, a violência e a delinquência. Em 1988 ele dizia: nós estamos no limiar. De fato, de lá pra cá isso aumentou muito. Tanto que alguns autores hoje se perguntam se o apelo ético é suficiente para um chamamento à confraternização, ao respeito ao outro ou se é preciso aumentar o aparato jurídico, do ponto de vista de que tem de haver regulações. Porque o apelo ético se mostra insuficiente perto da vontade política e da ação política decorrente dessa vontade, que diz que a ética é importante, mas nós temos que ganhar dinheiro. É uma volta à pré-Modernidade, pré-Iluminismo, pré-esclarecimento, que é a ideia da força de quem tem poder. Não é mais o respeito ao projeto universalista, a um projeto de liberdade, igualdade, fraternidade. Os mais fortes liquidam os outros seja pelo poder bélico, pela força de mídia, pela força física ou pelos aparatos que sustentam isso, como o policial e o de justiça. Então, no fundo, é um projeto de disputa de humanidade. Onde é que entra o jornalismo? Ele deveria esclarecer. E está fazendo isso ou não? Se a gente olhar a cobertura das operações Lava-Jato e Zelotes, não. Ele esclarece seletivamente de acordo com aquilo que acha que é o melhor para a empresa e não para a população. Então deixa de existir aquela ideia do Iluminismo de esclarecimento. Ou seja, todos são iguais perante a lei, mas como se diz popularmente, alguns são mais iguais que outros. O Estado não pode deixar os súditos desamparados, mas deixa porque viabiliza a vontade de poucos. Isso existia antes do surgimento dos estados nacionais e da representação dos poderes. Sempre se caminhou nessa direção, mas parece que agora há um retrocesso internacional. É uma disputa que, em última instância, é ideológica. E o jornalismo está nessa encruzilhada: como fazer valer aquilo que o gerou como um elemento central contemporâneo para esclarecer publicamente? Porque os códigos éticos ou deontológicos abordam isso: o jornalismo tem um papel fundamental na sociedade para que ela possa se enxergar, debater, porque ele esclarece aquilo que os outros não fizeram.
As novas diretrizes para os cursos de Jornalismo trazem desafios para o ensino?
Os desafios grandes sempre existem porque o currículo muda e a profissão também. Os novos formatos, as novas narrativas, o que é e o que não é jornalismo. A ética vai continuar sendo importante, as disciplinas teóricas vão ter que analisar esse novo cenário contemporâneo da humanidade e aplicar nos diferentes suportes. Além disso, temos as questões temáticas: como compreender por meio do jornalismo a política hoje, a economia, a cultura? Então os eixos temáticos vão ter que percorrer as próprias disciplinas.
A criação do mestrado e do doutorado em Jornalismo (a UFSC foi pioneira nos dois), é um sinal desse fortalecimento do campo?
É, pois consideramos que é preciso pensar mais. Como o jornalismo pode dar visibilidade pública imediata, massiva e em períodos cada vez mais curtos a esse movimento humano que envolve todas essas áreas e os movimentos sociais, os poderes representativos no estado moderno, a noção de democracia e fazer com que o público participe disso? Este é o ideal, o jornalismo como profissão do conhecimento moderno, que consegue trazer todas as outras áreas para dar visibilidade, mediante a sua especificidade técnica e ética e sua linguagem própria, para que a sociedade consiga entender o que se passa no entorno das outras áreas, faça relação com a sua vida e consiga se posicionar diante dela.
Quais são seus planos, agora como professor titular?
Estou na UFSC há 32 anos, mais 12 fora dela, contando o quartel, são 44 anos de trabalho. Tenho que examinar questões de saúde, necessidades familiares. O que eu gosto na universidade são o ensino e a pesquisa. O que eu não gosto? O fato de cada vez mais ser valorizado um produtivismo exacerbado, que não tem a ver com qualidade, mas com alpinismo acadêmico. Não tem a ver com mudar o mundo ou com contribuir para a sociedade. Isso é uma coisa que acho decepcionante. Segundo: cada vez mais as instâncias de controle jurídicas afastam aquela ideia da universidade como um polo do pensamento complexo, diversificado, em que as pessoas debatem. Terceiro: a burocracia universitária está cada vez mais sufocante. Então tudo isso faz com que a universidade seja muito limitada e esteja funcionando pela lógica da concorrência e não pelo pensamento universal, complexo, de debate.