Francisco José Castilhos Karam, pesquisador do objETHOS

Há 34 anos, em 1983, na Alemanha, Peter Sloterdijk lançava seu clássico Crítica da Razão Cínica, mais tarde publicado em outros países, tornando-se também uma referência para entender o comportamento humano, representado por várias instituições, ao final do século 20. Ele já percebia cinismo crescente à época em diversas atividades, como na religiosa, nas forças armadas, na política parlamentar, no Estado…

Também não deixa de falar sobre o jornalismo. O autor alemão considerava que o jornalismo estava se tornando um terreno mais fértil para a legitimação pública de ideias do que os próprios institutos de relações públicas, as agências de publicidade, os estúdios de propaganda e congêneres. Verificava tal tendência. Era mais conveniente e crível que o jornalismo continuasse a se chamar jornalismo, mas vivesse de estratégias como a da propaganda.

Talvez hoje, no Brasil de 2017, consigamos, quase quatro décadas depois do livro Crítica da Razão Cínica, constatar que a imprensa – como instituição consolidada na Modernidade e na democracia – ajudou a confirmar o autor alemão. Sim, a maior parte do jornalismo da chamada grande mídia faz parte, atualmente, de um amplo processo de propaganda de interesses particulares, desvinculando-se, a despeito da vontade e esforço de muitos de seus profissionais, do até então marco do interesse público. Uma nova etapa? Ainda dá pra chamar de jornalismo?

Embora ofereça muita munição como pauta, a troca de delação por liberdade não é tema de investigação jornalística. Faz parte do cinismo contemporâneo. Depois de mais de um ano na cadeia, Marcelo Odebrecht mudou radicalmente de opinião sobre fatos (veja aqui e aqui). Sob tortura física, talvez confessasse ainda mais. Quem não delatar – e de acordo com a interpretação que os inquisidores quiserem – pode ficar no calabouço para sempre. Se abrir o bico, rapidamente estará em casa. Que o diga quem não abriu e está lá faz muito tempo. Na ditadura militar também era assim.

Só desenhando

O jornalista Celso Schröeder sintetiza, em magistral charge, o assunto principal da semana – e que deveria ser pauta central jornalística. Pode-se dizer qualquer coisa, contra qualquer pessoa, angulada da maneira mais conveniente, editada e mostrada da forma mais conveniente de acordo com interesses da empresa, com “riqueza de detalhes” (coisa fácil de fazer), conforme alguns analistas da Globo News, mas sem qualquer apuração a não ser dados oficiais dos oficialistas de sempre – os delatores e o judiciário (do qual, suspeita e estranhamente, não há sequer um único delatado).

Charge do jornalista Celso Schröeder.

Na cobertura, influenciou mais uma vez o investimento a rodo pelo governo Temer em verbas milionárias na grande mídia. O jornalismo de grande parte da imprensa brasileira – rádios, tevês, revistas, jornais e portais – tornou-se suporte “jornalístico”, ou melhor, propagandístico, para segurar a opinião pública na direção conveniente, ou seja, na direção do interesse particular dos empresários, entre eles os da própria mídia. A isto se soma a dívida não paga pelas empresas com a Previdência Social, que em si mesmo minimizaria o problema do déficit público no setor. O perdão da dívida, a sonegação e o investimento feito pelo governo nas empresas jornalísticas não deixa muita dúvida sobre o papel de relações públicas que elas vem tendo na escolha e angulação de pautas políticas e econômicas.

Na última semana, a aparição de Michel Temer em entrevista à tevê Bandeirantes, a edição dos depoimentos de Marcelo e Emílio Odebrecht, as fontes analíticas de especialistas escolhidos a dedo e os comentaristas que têm convicção – mas não provas – atestam que o jornalismo se afastou há algum tempo do fundamento “afligir os satisfeitos e satisfazer os aflitos”, tornando-se uma espécie de porta-voz do interesse de poucos para “satisfazer ainda mais os satisfeitos e afligir ainda mais os já aflitos”, parodiando clássico jargão na área. A entrevista foi um primor de assessoria de imprensa prestada pela Band.

Como escreveu Sloterdijk, “o mal-estar na cultura adotou uma nova qualidade: agora se manifesta como um cinismo universal e difuso”. E mais: “A série de formas de falsa consciência que teve lugar até agora – mentira, erro, ideologia – está incompleta. A mentalidade atual obriga a acrescentar uma quarta estrutura: o fenômeno cínico”. Ele está na cobertura jornalísticas das delações, na escolha do “melhor para nós” para editar as falas; na adequação dos fatos às fontes confiáveis à empresa; na adequação dos fatos à opinião. E muito longe do jornalismo.

Com uma elite (assim chamada não se sabe a razão) predatória, como a brasileira, e com sua representação majoritária pela mídia e judiciário, constata-se que o Parlamento, com exceções, é uma adequação do pensamento midiático para aprovação de leis que prejudicam e comprometem o futuro de milhões. Interesse individual é o outro nome do interesse público. De Rede Globo a Bandeirantes; de O Globo à Folha de S. Paulo; de Veja a Istoé vemos majoritariamente o cinismo tomar conta da cobertura e dos comentários, com os conhecidos dois pesos e duas medidas.

Lula e Dilma não estão mais no governo. Mas o foco ainda está neles. FHC não está mais também, mas não há foco nele. Quem está no governo e envolvido com denúncias deveria ser o foco. Ou seja, Temer, os ministros e os cargos de confiança dos governantes que se apossaram do País em 2016 sem o aval das urnas e sem ter aprovado nas urnas o programa que agora querem implementar.

O papel das empreiteiras desde a construção de Brasília, passando pela ditadura militar (1964-1985) – com a sua conhecida corrupção de caixa 2 e desvio de verbas na construção da Transamazônica, asfaltamento de estradas e Itaipu Binacional (obras do governo militar), por exemplo – , mostra a negociação recorrente entre setor público e privado, em que empresários sempre saíram ganhando, e ganhando muito. E causando enormes prejuízos ao desenvolvimento social do País.

Sobre o passado, sobre o que é legal e o que é ilegal, sobre corrupção endêmica, há que investigar a história, desde a República Velha. Sobre o presente, há que investigar quem responde pelos destinos atuais do País, nos projetos de lei enviados ao Congresso, nas medidas tomadas pelo Executivo, nas decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

O jornalismo do presente e da apuração foi substituído pelo futuro do pretérito, pelo “teria sido”, pelo “teria feito”. Tal como a adequação dos fatos à opinião – pouco importando os fatos – trata-se da adequação do presente ao futuro que poucos querem, os que se beneficiaram sempre.

As delações de Emílio Odebrecht e de Marcelo Odebrecht mostram muito mais a indignação de Dilma Rousseff com as propinas do que o seu consentimento. E mostram muito mais o envolvimento do governo de Michel Temer e de parlamentares como Aécio Neves e Romero Jucá com tais propinas. Mas o foco é Lula… E o que ele representa: um potencial candidato presidencial para 2018, o qual é preciso, além de tudo, descaracterizar como um líder e que gosta de passar bem. Ora, todos gostam de passar bem, e quem não passa gostaria de chegar lá. Passar bem é ter saúde gratuita e de qualidade; acesso à escola e cultura; moradia; emprego; aposentadoria; lazer; enfim, vida de qualidade.

Infelizmente, a partir das reformas propostas por Temer e apoiadas pela mídia, subsidiada para defender interesses privados patrocinados pela propina oferecida diariamente pelo governo às empresas jornalísticas e nem mais disfarçada, “chegar lá” torna-se uma utopia cada vez mais distante.

O dinheiro público que vai para a empresa jornalística sai “do meu bolso, do seu bolso”, do “bolso do contribuinte” e agrava ainda mais a “crise da Previdência e do País”. Quanto às delações, a investigação jornalística, se jornalismo houvesse, deveria apresentar precisão, fatos e documentos de acordo com o tamanho das denúncias. Mas estamos no reino do cinismo.

Referência bibliográfica
Sloterdijk, Peter. Crítica de la razón cínica. Madrid: Taurus/Alfaguara, 1989. Tradução para o espanhol de Miguel Ángel Vega.