Rogério Christofoletti
Professor da UFSC e pesquisador do objETHOS
Em 1951, um dos mais celebrados diretores do cinema americano deu um soco no estômago da imprensa dos Estados Unidos com “A montanha dos sete abutres”. O diretor em questão era Billy Wilder e o soco foi metafórico, claro. Na película, um jornalista em decadência se aproveita de uma situação trágica para criar um grande circo midiático, o que vai resultar em intensa comoção social. O personagem vivido por Kirk Douglas manipula pessoas, distorce fatos, exagera nas emoções e alimenta uma macabra espiral de sensacionalismo. Um dos títulos originais do filme é “O grande carnaval”, e a realização entrou para a história do cinema mundial, sendo influente até hoje quando se objetiva retratar a mídia na telona.
Os últimos dias do noticiário político no Brasil me lembraram muito a atmosfera nefasta que Wilder mostrou. Claro que muita coisa nos distancia daquele empreendimento. Quase setenta anos se passaram, não estamos nos Estados Unidos, e manipular a opinião pública é cada vez mais difícil. Opa! Duas verdades e uma mentira na frase anterior. Quinze minutos de atenção são suficientes para mostrar como uma parcela poderosa dos meios de comunicação brasileiros alimentou uma história que descola a cada segundo da realidade. O clima de guerra criado em torno do depoimento do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva ao juiz federal Sérgio Moro, marcado para ontem em Curitiba, ultrapassou os limites da responsabilidade. E mais uma vez o protagonismo dessa operação veio das redações. Jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, e sites não se seguraram e transformaram o rito jurídico quase numa final de campeonato. As facas começaram a ser amoladas já no final de semana, quando as revistas semanais despejaram nas bancas suas edições. A professora Sylvia Moretzsohn analisou Veja e IstoÉ e, lucidamente, apontou que a imprensa reconhecia no titular da 13ª Vara Federal de Curitiba o algoz de Lula, condição que o fazia abandonar o posto de juiz para ocupar o de combatente.
De sábado para cá, o terror só aumentou.
Hordas de defensores de Lula migraram para a capital paranaense, onde já estava um outro exército: o de jornalistas. O grande carnaval teve direito a isolamento policial, atiradores de elite, vídeo de Moro tentando demover manifestações, cobertura minuto a minuto da chegada de Lula à cidade, entre outros exageros próprios do mundo circense.
Na terça, 9, véspera do “acontecimento”, a edição curitibana do Metro contrariou as gramáticas jornalísticas e recorreu até a verbo no gerúndio: “Esperando Lula”. A Gazeta do Povo – um dos principais jornais paranaenses – chacoalhou seus leitores com a manchete “A cidade em SUSPENSE”. Isso mesmo, com a palavra final em letras maiúsculas, ocupando quase a primeira metade da primeira página. No interior, páginas e mais páginas dedicadas ao assunto. No site do jornal, colunistas foram escalados para “opinar”, muitos deles insuflando os leitores. As seções de comentários – como se percebe em outros veículos – são perversas arenas, onde se digladiam raivosos de todas as cores, onde há apologia de crime e de violência, e onde parece não haver nenhuma moderação de comentários. Nenhuma, o que é muito preocupante.
Curiosamente, o mesmo jornal “tirou o pé do acelerador” no dia seguinte, a quarta, 10. Em manchete, a Gazeta do Povo veio com “Muito barulho por (quase) nada”. Ocupando toda a primeira página, uma foto mostrava um terreno sendo ocupado por militantes pró-Lula que montavam barracas para acompanhar o depoimento. “Curitiba corre o risco [sic] de ser paralisada hoje, em função do depoimento do ex-presidente Lula à Justiça Federal (…) Apesar de toda a mobilização, o ato em si tende a ser burocrático – e há até a possibilidade de o ex-presidente se manter calado”. Parece que a cansaram da brincadeira…

O editorial do dia é uma pérola do cinismo. Sob o título “Lula, o depoimento e as narrativas”, a Gazeta do Povo tenta prevenir seus leitores de que diversas versões surgirão a partir da audiência na 13ª Vara Federal, mas o melhor vem agora: “Um procedimento corriqueiro de um processo criminal, o depoimento do réu, está sendo transformado em um carnaval fora de época movido por uma guerra de narrativas que distorce deliberadamente a verdade ao transformar o trabalho da Justiça em luta de classes ou perseguição política típica de regimes de exceção”. Mas quanto cinismo!
Quem vem atuando como animador de torcidas até agora?
Quem estampa em suas páginas o tal ato burocrático como uma luta num ringue?
Quem vem apostando na narrativa do confronto, na lógica adversarial que opõe um ex-presidente investigado a um juiz implacável?
A quem interessa alimentar um quadro maniqueísta como este?
As primeiras páginas dos diários brasileiros da quarta (10) reforçaram o Fla-Flu jurídico-político. No Espírito Santo, A Gazeta colocou Lula altivo, mas pensativo, sob a manchete “Depoimento confirmado: A HORA DE LULA SE EXPLICAR”. Na Folha de S.Paulo, “Lula sofre reveses antes de depor a moro”. Nas bancas do Ceará, os leitores puderam ver a manchete de O Povo: “Lula e Moro: o encontro mais esperado da Lava Jato acontece hoje”. O Metro, nas versões de Curitiba e outras cidades, trouxe uma fusão dos retratos do ex-presidente e do juiz e uma manchete que mais parecia chamada de TV: “Curitiba, 14h”.
Hoje, quinta (11), o day after, as primeiras páginas oscilam entre o deboche ao depoimento de Lula e um hesitante distanciamento. O clima de antagonismo criado pela imprensa não foi totalmente abandonado, é verdade. O UOL, por exemplo, publica que “No duelo entre Moro e Lula, deu empate”. Isso mesmo! Como uma partida de futebol, como uma disputa qualquer no campo esportivo. “Para os analistas políticos do UOL Josias de Souza e Carlos Melo, não houve vencedor [sic] no depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao juiz da 13ª Vara Federal, Sergio Moro, nesta quarta-feira (10), em Curitiba”.
É evidente que se espera que a mídia atue com firmeza e distanciamento nas coberturas a que se dedica. Não se espera que ignore os movimentos da Operação Lava-Jato, uma das principais pautas nos últimos anos. Mas não é demais esperar que haja discernimento e rigor de apuração. Que as redações não sustentem seus relatos apenas em trechos de delações, em documentos apócrifos, em convicções para além de provas ou indícios. Que as redações não sejam cínicas de pensar que não interferem nos rumos da investigação. Que jornalistas e meios sejam responsáveis em suas abordagens, que não contribuam para um linchamento público de suspeitos (qualquer suspeito), que defendam a lei e o direito de defesa, os ritos jurídicos, a prudência e o respeito.
Não estamos muito distantes das cenas de “A montanha dos sete abutres”. Como lá, a mídia está decadente e vive a criar grandes carnavais. Como lá, o mundo aparece em branco e preto, e as notícias – verdadeiras ou não – têm consequências.