Rogério Christofoletti
Professor da UFSC e pesquisador no objETHOS

A morte trágica e repentina do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo, é o resultado mais visível desses tempos terríveis que vivemos. Dias de julgamentos e condenações apressadas. Dias de espetacularização, de soberba e vaidade. Dias odiosos e punitivos. Dias em que somos tragados para um turbilhão que massacra reputações e que pouco se preocupa com as consequências humanas e sociais dos nossos atos. Os acontecimentos das últimas três semanas apontam para diversos erros e exageros cometidos pelas autoridades judiciais e policiais e pela mídia. Analisar o noticiário e refletir sobre seu papel na construção de uma opinião pública é uma maneira de tentar evitar novos linchamentos sociais.

Há alguns dias, eu me preparava para escrever sobre a cobertura jornalística do caso Cancellier. A exemplo do que fazemos no Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), pretendia analisar como a mídia local abordava um assunto tão trepidante, afinal, em 57 anos de história, nunca a UFSC tinha assistido à prisão de um reitor. Colecionei algumas matérias e me contive para escrever, já que o assunto parecia longe do seu desfecho. Não posso me deter agora. Em mais de uma ocasião, disse em sala de aula que nenhuma notícia seria tão amplamente disseminada sobre Cancellier depois do festival que cercou sua prisão em 14 de setembro. Eu me referia a um comportamento frequente no jornalismo de priorizar a denúncia ao desmentido, a acusação à retificação. Infelizmente, eu estava errado, e a notícia de sua morte não apenas pegou a todos de surpresa como também escancarou um processo bárbaro de perseguição que ainda não cessou.

Dificuldades de apuração

Em dezoito dias apenas, acompanhamos a prisão, a negação dos crimes, a soltura, o afastamento do cargo, o isolamento e o pior final. Vimos também a disseminação da suspeita com um grau muito maior de empenho do que propriamente a disposição de se refinar a verdade, a fidelidade aos fatos. Denúncias motivaram a Polícia Federal a iniciar uma investigação na UFSC com a suposição de que recursos públicos teriam sido desviados em um programa educacional. O reitor Cancellier e outras pessoas chegaram a ser presos sob a acusação de que estariam dificultando o trabalho de apuração policial ou estariam envolvidos na possível fraude. A exemplo de outras vezes, as ações da Polícia Federal tiveram ampla cobertura da imprensa, ampliando o círculo de desconfiança sobre os acusados. A pressa na apuração aliada à negativa por parte da PF de dar mais informações provocou um vendaval sobre a reputação das pessoas envolvidas.

Os jornalistas que cobriam o caso estavam com muitas dificuldades iniciais para verificar as informações: não tiveram acesso à denúncia e as próprias autoridades evitaram dar detalhes. Na entrevista coletiva concedida na manhã de 14 de setembro, é possível ver como os repórteres tentam extrair as informações e como as fontes resistiam em dizer até mesmo qual era a natureza da detenção, se condução coercitiva ou prisão preventiva ou temporária (Veja a íntegra da coletiva e os questionamentos dos repórteres a partir dos 20 minutos no vídeo: https://www.facebook.com/jornalzero/videos/848009365381285/). As informações eram muito desencontradas e havia lacunas na história. Isso levou a um primeiro erro fatal na cobertura: como rastilho de pólvora, a informação de que havia um desvio de 80 milhões de reais agitou as redes sociais e levou inclusive um grupo de estudantes a protestar na reitoria. O jornal Notícias do Dia cobriu a manifestação e chegou a mencionar a estimativa policial do rombo, R$ 20 milhões, informação ainda não totalmente sustentada em provas ou perícias sobre o caso. Isso mesmo! Nem a PF sabe ainda quanto teria sido desviado…

A pressa em dimensionar o mal feito fez com que algumas paredes na UFSC aparecessem pixadas cobrando os tais 80 milhões e espalhou publicamente uma informação ainda não completamente apurada nem pela polícia nem pelos jornalistas.

Em praticamente todas as emissoras de TV, jornais e sites da imprensa catarinense, o reitor Cancellier teve seu nome divulgado e imagem exposta, vinculando-o à investigação. Na edição de 15 de setembro, o Diário Catarinense reservou amplo espaço em sua primeira página com a manchete “A operação policial que abalou a UFSC”. Em uma das chamadas, mencionou a prisão temporária do reitor, mas não chegou a citar seu nome ou fotografia. O concorrente Notícias do Dia não teve o mesmo cuidado. Sua manchete não dá margem para dúvida, o crime aconteceu: “Fraude com recursos do ensino a distância”. No complemento, o texto reforça o erro da informação: “Investigação apura desvios de dinheiro na UFSC, que somam R$ 80 milhões”. No Diário do Litoral, jornal que circula em Itajaí e Balneário Camboriú, a chamada na primeira página faz uma perigosa vinculação: “Reitor da UFSC é preso em operação de delegada que iniciou a Lava-Jato”. A informação não está incorreta, mas ela contribui para outro contexto, mais inflamável.

Reputação em frangalhos

A cobertura dos dias seguintes tentou se reequilibrar, e não se pode negar que houve alguns esforços para que o mais visível acusado se defendesse. Entrevistas com o reitor Cancellier foram publicadas, mas o estrago à sua reputação estava feito e a imagem da própria UFSC bastante abalada.

A difamação é um processo rápido, insidioso e necrosante. Quando um conjunto de suspeitas recai sobre uma pessoa ou organização e quando essas suposições ganham caráter público na mídia, a potencialidade do dano sobre a imagem é avassaladora. Não há controle para deter a avalancha de pré-julgamentos e de condenações apressadas. Nas redes sociais, o festival de linchamento moral de Cancellier já estava acontecendo. Não só isso. A UFSC, seus docentes, técnicos e alunos foram motivo de comentários de escárnio, intolerância e ódio, abrindo espaço para críticas à educação pública e gratuita e ao papel da universidade na sociedade.

De forma majoritária, a presunção de inocência foi simplesmente deixada de lado. E Luiz Carlos Cancellier de Olivo, mesmo depois de libertado por ordem judicial, colheu os frutos estragados da intensa exposição de seu nome e imagem a uma suspeita de crime. Afastado de suas funções, não podia nem frequentar o seu local de trabalho. Sob observação e escrutínio público e policial, ficou isolado. Queixou-se na semana passada em artigo publicado em O Globo, dizendo que se sentia exilado. Negou que tivesse atrapalhado as investigações, mas a turba sedenta por “justiça” preferiu sua condição de réu. Percebam: ele foi julgado e condenado antes mesmo de ter sido completamente investigado.


Na segunda-feira, 2 de outubro, minutos após a confirmação de sua morte, os principais portais noticiosos vinculavam o fato à sua condição de investigado, alimentando ainda mais os odiosos de plantão que podem ter visto naquele desfecho a justiça sendo feita. Não foi. Nenhuma justiça se faz com cadáveres. Nenhuma notícia vale uma vida. Nenhuma sanha de investigação deve produzir vítimas fatais.

Como cobrir?

As circunstâncias da morte – um suicídio – e o contexto que a cercam – uma espalhafatosa operação policial, respaldada pela justiça e alimentada pela condenação precipitada de parte da imprensa – chacoalham todas as convicções. É ainda mais trágico que Cancellier tenha recorrido ao último gesto dois dias após o chamado Setembro Amarelo, mês que vem se consagrando para desmitificar e combater o suicídio, um tabu social que todos precisamos enfrentar. Não existe no jornalismo brasileiro um consenso sobre como cobrir casos como esse. Durante décadas, as redações evitavam dar notícias de suicídios temendo que isso contribuísse para novos atos semelhantes de desespero.

Felizmente, o jornalismo vem se abrindo para discutir seus procedimentos. Um exemplo é a reportagem de Emerson Gasperin e Karine Wenzel para o caderno Nós, do Diário Catarinense, publicada há poucos anos. Em 2009, a Associação Brasileira de Psiquiatria publicou uma cartilha que orienta jornalistas e a população em geral a como lidar com situações extremas e que necessitam de intervenção.

Apesar dessas iniciativas, a cobertura sobre a morte de Cancellier apresenta diversos problemas, que vão do dispensável detalhamento da morte (informam o local preciso e a forma adotada) à mais abjeta exploração sensacionalista. Na primeira página do Diário do Litoral, por exemplo, a manchete desumana e insensível é “Protestou com a vida: Reitor da UFSC se mata em shopping”, acompanhada de foto que ajuda a estigmatizar a pessoa e sua família.

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Não bastasse tudo isso, a notícia da morte trágica ainda ressalta a condição de investigado de Cancellier. No rodapé da primeira página da Folha de S.Paulo, a chamada é “Investigado, reitor afastado da UFSC é achado morto”. Em O Globo, “Reitor investigado é achado morto”. Sim, é verdadeiro dizer que Luiz Carlos Cancellier de Olivo estava sendo investigado, mas é também verdade afirmar que ele negava a participação em crimes ou a descontinuação das investigações. Isto é, as manchetes negam ao acusado que se defenda, impedem que ele contradiga a acusação, enfim, que fale.

Como disse antes, a difamação é um processo rápido, insidioso e necrosante. Ela se espalha como um vírus, perverte, corrompe, esgarça e destrói os tecidos que ajudam a formar um nome, uma imagem, o reconhecimento de uma personalidade. O colunista do Notícias do Dia, Carlos Damião, corajosamente, pergunta quem matou o reitor da UFSC. Seu texto expressa uma indignação e uma fúria que precisam alimentar a sociedade e as redações a buscarem formas para reencontrar respostas. Que essa disposição para responder não se deixe alimentar por um tom justiceiro, de assassinato de reputações, de linchamento social e de condenação prévia.

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