Produção e edição: Dairan Paul e Juliana Freire

O Observatório de Ética Jornalística inicia mais uma série de entrevistas com pesquisadores para discutir questões contemporâneas do jornalismo e suas implicações éticas. Deserto de notícias, uso de robôs nas rotinas produtivas, contribuições marxistas para uma prática contra-hegemônica e as relações do jornalismo com a democracia e os direitos humanos são alguns dos assuntos que pautaram as conversas.

A primeira entrevistada da série é Cláudia Nonato, professora do Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM-FAAM Centro Universitário, em São Paulo. Nonato também é pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT-ECA/USP), coordenado pela profa. Dra. Roseli Figaro. Lá, desenvolve pesquisas sobre novos arranjos econômicos no jornalismo, especialmente aqueles organizados em coletivos.

Durante sua participação no 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom), em Joinville, Nonato apresentou dados da pesquisa que coordena atualmente no FIAM-FAAM, voltada ao perfil de jornalistas que são e atuam nas periferias de São Paulo.

O trabalho às margens das grandes redações é tema constante na trajetória da pesquisadora. Sua tese de doutorado, defendida em 2015, na Universidade de São Paulo (USP), analisa a migração de jornalistas para blogs. A ideia surgiu da observação prévia que Nonato realizou no seu mestrado, quando percebeu a frustração de diversos profissionais que recorriam às plataformas gratuitas na internet para satisfazer suas vontades de “fazer jornalismo” – o que não era possível em assessorias de imprensa, por exemplo.

Além de uma perspectiva voltada ao mundo do trabalho, Nonato também participou recentemente de debates sobre a importância da diversidade no jornalismo. Conforme a análise da pesquisadora, o apagamento de mulheres negras nas redações é um problema estrutural que vai do ensino básico até a sala de aula, perpassando o corpo docente das universidades e a efetivação dos estágios na entrada dos alunos para o mercado de trabalho.

Na entrevista a seguir, Nonato sintetiza os resultados que alcançou na sua tese de doutorado, as pesquisas que desenvolve atualmente sobre jornalismo das periferias e questões de raça e etnia que atravessam o mundo do trabalho das jornalistas.

Um dos seus temas de pesquisa é a reestruturação que jornalistas buscam em arranjos econômicos alternativos, seja através de blogs, coletivos ou atuando como freelancers. Em que medida você considera que essas novas formas de organização impactam a autonomia do profissional?

Na minha tese de doutorado, uma das minhas hipóteses era essa: os jornalistas estavam migrando para os blogs em busca de mais autonomia e independência da mídia hegemônica. Isso se confirmou, pelo menos para aqueles blogueiros que foram meu objeto principal. Mas a migração também aconteceu por questões financeiras e de desemprego, não apenas para satisfazer a autonomia deles. Depois, com a crise, isso se ampliou.

Chamo essas mídias de arranjos econômicos alternativos porque, a meu ver, essas pessoas estão formando coletivos por falta de opção e por questão de desemprego, além da busca por certa autonomia. Acho que já passamos dessa fase da glamourização da independência. Agora é uma questão de sobrevivência mesmo.

Hoje é mais difícil você ter uma autonomia total. Você sempre depende de alguém. Por exemplo, a gente fala muito de uberização. Os motoristas precisam ter uma boa avaliação do consumidor para continuarem naquele aplicativo. No caso dos jornalistas, eles precisam ter credibilidade, visibilidade e público para manter aquele veículo. Ou vive dos cliques, ou da publicidade. Então sempre está dependendo de alguma coisa. Você nunca tem uma independência completa.

Você apresentou no Intercom um trabalho sobre o jornalismo das periferias praticado em São Paulo, a partir da etapa quantitativa da pesquisa. Quais foram os dados que mais chamaram a sua atenção até agora?

Nessa pesquisa parti do grupo Rede de Jornalistas das Periferias, que se formou em 2016 a partir de 13 coletivos. Tive um problema metodológico: minha intenção era entrevistar todas as lideranças – embora eles não usem esse termo, porque é “horizontalizado” – mas, para a minha surpresa, muitos não quiseram falar comigo. Disseram que a grande academia não estuda a respeito deles, que são vistos como bichos do zoológico. No fim, tive que ampliar os treze coletivos e fiz uma pesquisa quantitativa por meio de um formulário online, enviado para esses grupos.

Dessa primeira etapa, tivemos algumas respostas um pouco surpreendentes, sim. Por exemplo, as pessoas que responderam são brancas, mais ou menos jovens – com média de 25 anos – e mulheres, em sua maioria. São as primeiras de suas famílias que têm diploma. Isso, na verdade, também vem dos governos anteriores, de Lula e Dilma, que deram incentivo para essas pessoas cursarem a graduação. No entanto, elas não conseguiram chegar até a pós porque “não deu tempo”, devido aos cortes recentes.

As iniciativas também são originadas de trabalhos de conclusão de curso, geralmente. Por falta de opção, ou por acharem que aquele nicho não estava sendo contemplado, resolveram continuar com os projetos. Então não é o único meio de sobrevivência, eles trabalham com outras coisas. Nos governos anteriores, até começaram a ganhar algum dinheiro com editais da prefeitura, mas agora já não está dando mais. Eles estão abrindo para essas fundações, como a Ford, recebendo incentivos de outros lugares e fazendo freelas.

Se você perguntar para eles qual é o maior problema do arranjo, eles vão dizer que é o financeiro. Eles não têm nem sede. Eu fiz seis entrevistas e só uma foi em sede própria, num lugar que ainda é doado pela igreja da comunidade local. O restante foi em café, biblioteca, na casa de amigos que eles se reúnem. É um problema de estrutura física, mas também financeira.

E quais são as próximas etapas da pesquisa?

 Agora vamos trabalhar com o discurso das entrevistas. Essas pessoas não consideram que praticam um jornalismo comunitário ou local, mas um híbrido, no sentido de que Néstor García Canclini [antropólogo argentino] fala. Elas citam termos como comunitário, local, contra-hegemônico e também periférico. Eu falo “jornalismo da periferia” porque não utilizo o termo “jornalismo periférico” – eu ainda não sei te dizer o que é isso, e é uma parte da pesquisa que ainda preciso desenvolver.

Então, na hora de marcar as alternativas, eles não colocam que fazem jornalismo periférico, mas um misto de tudo. Esse é um caminho que a gente ainda precisa decifrar. Os entrevistados falam que é contra-hegemônico, por exemplo, porque querem acabar com a visão estereotipada que a mídia traz das periferias – no plural, porque cada periferia tem sua peculiaridade, segundo eles. Não é uma massa homogênea.

Mas também tem alguns problemas, porque eles moram naquelas localidades. Eu tenho um entrevistado que foi ajudar um amigo, numa situação fora do coletivo, e acordou no dia seguinte com uma arma apontada por um policial na cabeça dele. Eles acabam não se envolvendo nas coberturas sobre violência e tráfico. Então é um jornalismo isento? Não sei. Como você vai fazer um jornalismo sem se envolver nas questões que realmente abalam a comunidade? Nem eles sabem exatamente.

A partir dos dados da sua tese de doutorado, você também constatou o baixo número de negros e negras nas redações brasileiras. Quais são as dificuldades estruturais que estes sujeitos passam para conseguirem inserção no mercado de trabalho do jornalismo?

Na instituição que trabalho, apenas três dos 40 professores são negros. Tinha mais, mas eles vão saindo. Então comecei a ser convidada para alguns eventos, embora eu não estude etnia e raça.

Eu falo a partir da minha experiência. Quando fiz faculdade de jornalismo, na Cásper Líbero, tinha eu e outro colega negro na universidade inteira. Hoje, dando aula para uma particular, já peguei classe com 80% de alunos negros ou mestiços. Só que, como eu disse, assim como não deu tempo para eles chegarem na pós-graduação, também é difícil atingir o mercado de trabalho. E essa é uma questão da periferia: o pessoal de lá não chega na redação.

Quando vejo fotos que o pessoal posta das equipes, acabo reparando que não tem negro. E aí como você vai pautar questões relacionadas à raça, à periferia? Eu nem culpo essas pessoas. É que não está no dia a dia delas. As empresas de comunicação deveriam integrar, ir nas universidades e pegar essas pessoas. O pessoal da área de publicidade tem feito isso. As agências pagam até curso de inglês. Mas por quê, também? Qual é o interesse por trás?

A Agência Mural de Jornalismo das Periferias chegou a colaborar com a Folha de S. Paulo, não?

Sim, é mão de obra barata para eles [da Folha]. A pessoa tem que sobreviver, você precisa entender o lado deles. Agora tem essa questão do empreendedorismo, de ter o seu próprio negócio. É difícil a gente ouvir da boca de jornalista que ele é empreendedor de si mesmo. Agora que é uma disciplina obrigatória nos cursos pelas novas diretrizes, talvez a gente vá ouvir mais isso, infelizmente.

Por fim, e retomando a questão anterior, a diversidade de gênero e de raça pode impactar o trabalho produzido nas redações?

Sim, impacta mesmo. É um ciclo. Chegar na faculdade já é difícil. Depois, quando fazem estágio, não são efetivados. Vai ser aquele aluno que vem de uma classe média, de escola boa. Na faculdade, você já vê que ele é diferenciado, seja pelo TCC, pelas leituras ou pela escrita. Esses alunos vão entrar muito fácil para o mercado de trabalho. Agora, aquele que veio de uma escola pública, que não teve uma base fundamental para se desenvolver profissionalmente, é muito difícil. É uma questão estrutural que vem desde o ensino médio fundamental, porque na graduação a gente não consegue suprir isso. E as empresas de comunicação, que teriam que absorver essas pessoas, não absorvem. Daí elas vão para os arranjos – não só os da periferia, mas também os de gênero, de todos os nichos. Essa é a mídia alternativa que a gente precisa estudar. Precisa ver onde vai parar e como vai sobreviver.