Janara Nicoletti
Doutora em Jornalismo e pesquisadora associada do objETHOS

À medida em que a crise sanitária avança no país e o debate político se acirra em torno de pautas antidemocráticas, ataques contra jornalistas se proliferam com agressões físicas, verbais e agravam a violência digital contra os profissionais da mídia. No documento Jornalismo, Liberdade de Imprensa e Covid-19, a Unesco destaca que a pandemia intensificou riscos físicos, psicológicos, legais e digitais aos jornalistas em todo mundo. Entre essas ameaças, está o aumento do risco de ataques virtuais contra as mulheres jornalistas, que “já sofriam maiores níveis de assédio online”. Segundo o texto, “o aumento da vigilância e dos hackers prejudicou a capacidade dos jornalistas de garantir a confidencialidade de suas fontes”.

Enquanto se aproxima do pico da pandemia, o Brasil presencia a escalada de ataques contra jornalistas – por parte do presidente da República em suas declarações públicas e de seus apoiadores, especialmente no ambiente virtual. De acordo com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), somente em 2020, até 3 de maio, Jair Bolsonaro disparou 179 agressões verbais a jornalistas. O “cala a boca” contra repórteres na frente do Palácio da Alvorada na última terça-feira (5) ganhou eco com a hashtag #calabocafolha utilizada pelos seguidores do político nas redes sociais, apesar de também ter gerado reações em repúdio ao ato.

O assédio online contra jornalistas é potencializado por discursos de ódio contra a imprensa e ataques motivados por pautas de direita ou extrema-direita, explica Silvio Waisbord em entrevista ao objETHOS. O professor leciona na universidade norte-americana George Washington e atua como pesquisador visitante do Center for Media at Risk da Annenberg School for Communication, da Universidade da Pensilvânia, também nos Estados Unidos. Atualmente, estuda o tema mob censorship (censura da multidão), que caracteriza um tipo de censura digital contra os profissionais da mídia.

Após entrevistar 30 jornalistas norte-americanos,Waisbord observou que os ataques online contra os jornalistas são uma nova forma de censura, em que o objetivo é silenciar os profissionais e as empresas de mídia. Como consequência, ela pode gerar “intimidação, auto-censura, não falar ou mencionar certas fontes”, comenta.

Em uma palestra sobre o tema no início de abril, ele explicou que esses ataques configuram um tipo de censura diferente da praticada pelo Estado, mercado ou grupos paramilitares. Ela é motivada pela ação de pessoas comuns, que se mobilizam no ambiente online para ameaçar, intimidar e promover o discurso de ódio contra os jornalistas e empresas de mídia, pregando a demonização da imprensa e a colocando como inimiga do público.

Alguns perfis de profissionais acabam sendo mais expostos a este tipo de assédio, como mulheres, negros, trabalhadores de organizações alvo de ataques e aqueles que cobrem temas críticos a políticos ou contrários às agendas de grupos conservadores e populistas. “São pessoas pró-governo e que olham os jornalistas como inimigos”, pontua o pesquisador.

De acordo com Waisbord, a violência digital pode afetar a tomada de decisões editoriais. Muitos jornalistas passam a evitar cobrir certas pautas para reduzir os riscos de represálias, por exemplo. Da mesma forma, algumas fontes podem ficar relutantes em atender profissionais ou empresas que são alvos constantes de ataques digitais. Na palestra online para o Center for Media at Risk, o professor ressaltou ainda que apenas uma fração do que acontece com os profissionais é reportado pela mídia. Por isso, ele classifica este como sendo um fenômeno global, um “novo normal” no jornalismo.

Em entrevista para o objETHOS, Waisbord afirma que as estratégias de intimidação durante a cobertura da Covid-19 parecem ser similares ao verificado em seu estudo. Para ele, é “muito difícil” os jornalistas conseguirem se proteger desse tipo de ação. “Reportar os ataques é importante, mas duvido que seja eficaz para diminuí-los. Proteção é importante, mas não suficiente para resolver o problema de fundo”, avalia.

“Os jornalistas estão vulneráveis a ataques digitais há algum tempo, então o que está acontecendo agora é novamente a continuação de tendências preexistentes”

Você poderia explicar melhor o que seria mob censorship, como estes grupos se organizam e como isto afeta os jornalistas no seu dia a dia?

A ideia de censura da multidão refere-se a tentativas populares de silenciar repórteres. É diferente do tipo de censura convencional por estados, forças de mercado ou atores não legais, como cartéis de drogas e esquadrões da morte. É online e, em grande parte, auto organizado por indivíduos e grupos que praticam uma espécie de vigilância para disciplinar os repórteres. Eles se encontram geralmente em sites de direita e extrema direita, onde o ódio contra a grande mídia é comum. O impacto sobre a mídia é palpável – de medos sobre possíveis repercussões ao monitoramento rigoroso de ações online que potencialmente podem afetar as redações.

Como o discurso populista captou a temática do coronavírus? Por que esse discurso enxerga o jornalismo como um inimigo?

Essa é uma grande questão. Merece tratamento separado e longo. Estamos apenas começando a entender como o populismo de direita enfrentou (ou falhou) a pandemia. Claramente, sua desconfiança de especialistas e ciência, freios e contrapesos, autonomia de organizações de prestação de contas e personalismo é uma mistura tóxica.

Em diferentes países, como Brasil e Estados Unidos, há uma grande polarização sobre o coronavírus. Como isso afeta o trabalho jornalístico e a credibilidade da informação veiculada pela imprensa?

O impacto no jornalismo é evidente. Organizações de notícias que apoiam Trump e Bolsonaro ficaram muito fechadas à linha oficial da pandemia. Outras organizações, geralmente contrárias a essas administrações, confiaram em uma mistura de informações científicas acopladas a políticos da oposição, que geralmente são mais simpáticos aos especialistas em saúde pública. A polarização é novamente refletida na cobertura noticiosa. A cobertura amplia as identidades de polarização e partidarismo/ideologia.

Do ponto de vista da segurança digital, como isso afeta os jornalistas?

Os jornalistas estão vulneráveis a ataques digitais há algum tempo, então o que está acontecendo agora é novamente a continuação de tendências preexistentes. Assédio, tortura de jornalistas que trazem informações que desafiam o discurso oficial foram alvos de ataques.

O Repórteres Sem Fronteiras publicou a versão mais recente do Índice de Liberdade de Imprensa, que avalia uma década decisiva para o jornalismo e a liberdade de imprensa. O RSF menciona a ampliação de crises convergentes, e as caracteriza em cinco frentes: crise geopolítica, devido aos regimes autoritários e repressivos; crise tecnológica; crise democrática; crise de confiança e crise econômica. Qual a sua avaliação no contexto do jornalismo para os próximos anos?

É difícil ser otimista em relação ao jornalismo nos próximos anos, dada a combinação de fatores econômicos, políticos e sociais. A crise do modelo comercial, a precariedade das condições de trabalho, a competição de sites não noticiosos por atenção e financiamento do público, as dificuldades de modelos de financiamento alternativos e a censura e perseguição oficiais são alguns problemas enormes.

>> Gostou da entrevista? Essa não é a primeira vez que conversamos com o professor Silvio Waisbord. Você também pode ouvir uma gravação em áudio realizada em 2010, na qual o pesquisador discute limites éticos para a prática jornalística. Acesse aqui.