Juliana Rosas
Doutoranda em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisadora do objETHOS
Pesquisadora fala sobre educação e ensino a distância em tempos de pandemia e as discussões sobre o tema na mídia
Cerca de três meses. Foi o tempo entre o primeiro caso da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, na China, e a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Após o anúncio, países do mundo inteiro tomaram medidas que alteraram, da noite para o dia, a vida e o cotidiano de bilhões de seres humanos em todo o planeta. Crianças não poderiam ir à escola. Os pais não poderiam deixá-las na creche. Não haveria creche. Vários pais e mães passariam a trabalhar remotamente de casa. E ao mesmo tempo, cuidar dos filhos que estariam em casa. Cinemas fechados, bem como a maioria dos restaurantes. Universidades sem aulas. Bibliotecas cerradas. Hospitais cheios. Leitos ocupados. Rotinas transformadas de repente. Quarentena e isolamento social eram as principais recomendações para o não alastramento do vírus.
No Brasil, vimos, além da interrupção de vários serviços que visavam a não aglomeração e dissipação do vírus, problemas na condução dos sistemas social e de saúde, declarações e manifestações contra o isolamento. O resultado trágico foram milhares de mortos e caos no sistema de saúde de vários locais. Passados meses de quarentena e isolamento social – ainda que nem sempre cumpridos por todos – aumentou a cobrança pela volta à normalidade ou de solução para algumas atividades. Cresceu a pressão pelo ensino remoto ou a distância, mesmo sem a expertise ou infraestrutura necessárias.

“Eis que chega o coronavírus e todo mundo é obrigado a adotar alguma estratégia de homeschooling. E todo mundo está odiando. A tal da socialização, argumento número 1 a favor do ensino presencial na escola, faz hoje parte de um passado mítico e feliz. Muita gente está percebendo que educar não é uma tarefa intuitiva. Ao contrário: requer enorme preparo e estudo. Entram em cena conhecimentos tão variados quanto os da filosofia, da psicologia (do desenvolvimento, da infância e da adolescência), da sociologia (geral, da educação, da infância), da história (geral, das Ciências, da profissão docente, da educação moderna e contemporânea), da cultura (corporal, brasileira, do brincar), da didática (geral e específica), saberes específicos (currículo, avaliação, gestão de sala de aula), inclusão (deficiência intelectual, superdotação, libras) – e, claro, da área base de cada disciplina”, argumenta o jornalista e professor universitário Rodrigo Ratier. Com outras palavras, ele sustenta a ideia da ilustração acima. Educar não é tarefa fácil. Contudo, uma vez que interessa a todos, muitos têm uma opinião sobre. E nem sempre a mais precisa.
Para refletir sobre o assunto, conversamos com a jornalista e pesquisadora Isabel Colucci, doutora e mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina. Ela é membro do grupo de pesquisa Comunic, que atua desde 1998 em pesquisas sobre educação e tecnologia, e participa do Conexão Escola-Mundo: espaços inovadores de formação cidadã, projeto de pesquisa financiado pelo CNPq, onde se investiga a educação em direitos humanos na cultura digital, por uma perspectiva crítica do uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC). O projeto atua no Colégio de Aplicação da UFSC e no Instituto Central de Educação Isaías Alves, em Salvador (BA).
A pesquisadora ressalta que o conteúdo da entrevista foi baseado, além de sua formação, em construções como membro do grupo e do projeto. “São ideias, debates que fazemos coletivamente. O grupo é bem interdisciplinar e como meu foco de pesquisa não é EAD, mas sim educação e mídias, aprendo tudo isso junto com eles”, afirmou. Isabel, contudo, participou de dois projetos de extensão nesta área durante sua formação na UFSC. Ainda que o foco da entrevista não seja discutir a modalidade, iremos refletir sobre questões prementes que estão em pauta no jornalismo e trazidas à tona durante a pandemia. O ensino remoto é uma delas, bem como o modo como a sociedade pode abordá-lo.
“As tecnologias podem sim nos aproximar, mas para isso é preciso conhecê-las, saber de suas contradições”.
Mesmo antes da atual pandemia, já existiam modalidades de ensino a distância (EAD). E estas foram sendo ampliadas ao longo do tempo e especialmente apoiadas pelo atual governo federal, algo que gerou críticas. Você poderia falar, primeiramente, sobre o histórico do EAD no Brasil, suas vantagens e desvantagens pedagógicas?
De fato, o ensino não presencial não é nenhuma novidade. Ele já ocorria antes mesmo da criação da internet, por correspondência, ou por teleaulas, inclusive aqui no Brasil. Porém, para começarmos essa conversa, a gente precisa abordar essa polifonia em torno do termo EAD.
A EAD é uma modalidade de ensino com tradição no Brasil e sobre a qual paira um certo preconceito. Muitas vezes porque esse debate solapa uma discussão anterior: de que EAD estamos falando. A educação na EAD não deve ser uma mera virtualização do ensino presencial. Ela deve ser muito bem planejada, para que contemple dimensões importantes do processo educativo, como a interação entre as pessoas que compõem aquela comunidade de ensino.
O problema que eu vejo na forma com que a EAD está sendo incentivada – e a pressão que se faz para que as instituições públicas de ensino migrem para essa modalidade em razão da pandemia – é a compreensão de EAD que fundamenta esses projetos. A UFSC, por exemplo, tem graduações na modalidade a distância há mais de 15 anos, com muita expertise na área. Uma das vantagens mais evidentes é a democratização do ensino, porque você consegue contemplar pessoas distantes dos grandes centros e trabalhadores, que ganham flexibilidade de horário.
Esses cursos, porém, são planejados por meses antes de serem iniciados. Além disso, há toda uma etapa de formação de professores e, muito importante, eles contemplam uma carga horária, em geral, de 30%, presencial. Uma boa EAD precisa de encontro (virtual ou presencial). Precisa de atividades e recursos para o diálogo entre alunos e professores. Se a gente resgatar o grande Paulo Freire, ele já nos dizia que educação não é mera transmissão de conhecimento, é construção de conhecimento, pelo encontro entre sujeitos. Então, pensar a EAD envolve isso. Do contrário, estamos falando apenas de uma virtualização do conteúdo transmitido pelo professor. E isso não é suficiente.
Também com a situação corrente, se começou a ouvir mais sobre o ensino infantil doméstico (em inglês conhecido como homeschooling), algo proibido no Brasil. A prática é legalizada em vários países, como Estados Unidos, Áustria, Bélgica, porém, proibida em outros, como Alemanha e Suécia. Alguns políticos, especialmente da ala conservadora, defendem que esta seja legalizada no Brasil. Como está essa discussão no país? Que benefícios e malefícios ela poderia trazer?
Essa discussão ganhou fôlego recentemente pela ala conservadora, em razão da acusação de que as escolas promoveriam doutrinação política, ideológica e até mesmo sexual. É muito baseada em fake news que circularam principalmente no período eleitoral, como o “kit gay” e a absurda mamadeira com bico em formato de pênis, que, alegam, seria usada em creches públicas. Essa educação domiciliar, nesse momento, é defendida para que os pais possam proteger seus filhos de uma pretensa doutrinação que chamam de esquerdista. Há uma relação profunda com a ideia, já barrada em diferentes momentos pelo Superior Tribunal Federal por ser inconstitucional, da Escola Sem Partido (que exige dos professores uma impossível neutralidade em relação ao conteúdo. Digo impossível porque fazer um plano de ensino já é um percurso permeado pelas subjetividades do docente).
Essa ala conservadora e esses pais entendem que o conteúdo de algumas disciplinas, como História, Sociologia, entre outras, doutrina as crianças. Eles negam avanços pedagógicos importantes, como uma educação crítica, que incentiva o pensamento, e não a decoreba. O homeschooling, em outros países, é uma realidade muito diferente, baseada em liberdades individuais (o direito da família de decidir sobre a educação da criança).
No Brasil, temos uma realidade muito distinta. Primeiro: é importantíssimo que países que adotem o homeschooling tenham mecanismos para acompanhar o processo educativo das crianças, porque a educação é um direito delas. Segundo: é fundamental que em um país tão desigual como o nosso, o Estado tenha obrigação sobre a educação das crianças. E a educação escolar obrigatória, a partir dos 4 anos de idade, é o que garante a todas as famílias do país o direito de colocarem seus filhos na escola.
Terceiro: é na escola, na grande maioria das vezes, que casos de maus tratos, negligência ou vulnerabilidade da criança ou da família são identificados. A casa das crianças é o lugar mais frequente de ocorrências de abusos sexuais, por exemplo. Eu, pessoalmente, sou partidária das liberdades individuais e posso entender que alguns pais queiram ter o direito de não serem obrigados pelo Estado a enviar seus filhos a uma determinada instituição. Mas nossos dados, a nossa realidade, nos mostram que, nas circunstâncias atuais, privar as crianças da escola é danoso para elas.
Diante da atual situação, políticos, especialistas e sociedade de maneira geral buscam soluções para o problema que a pandemia trouxe. Não somente para a saúde, mas para o trabalho, educação e tarefas do dia a dia. O trabalho remoto e a educação doméstica foram as primeiras e mais rápidas ações tomadas para alguns empregos e pelas escolas. A pressão para que escolas e universidades adotem alguma modalidade de ensino remoto aumentou. Como você vê esta situação? É possível adaptar a educação para plataformas online?
Sim, é possível. Mas não na velocidade que as famílias, alguns veículos jornalísticos e personalidades políticas vêm cobrando. Participo de muitos grupos ligados à educação, seja por pesquisar na área ou por ser mãe de crianças em idade de Educação Infantil e Fundamental 1. Muitas pessoas falam: se todos tiveram que se reinventar do dia para a noite, por que a escola/universidade não fez o mesmo ainda? Uma coisa que é preciso que fique muito clara para a sociedade: a escola/universidade é uma instituição extremamente complexa, principalmente as públicas.
Precisa contemplar a realidade de muitas famílias, porque não podemos escolher um modelo que deixe alguns para trás. Há uma primeira barreira muito séria nesse debate: as condições de acesso à internet são extremamente desiguais no país (a TIC Domicílios 2018 mostra que 33% dos domicílios brasileiros não têm conexão). Mesmo quem tem acesso à rede, muitas vezes só tem por celular. É abissal a diferença para o planejamento de uma boa aula o tipo de equipamento em que os alunos fazem o acesso. Além disso, os estudantes estão vivendo realidades muito diferentes. Enquanto alguns têm condições de estudar, outros estão ajudando no cuidado com irmãos menores, ou mesmo trabalhando, lidando com toda sorte de dificuldades. Então, a primeira coisa é a realização de um mapeamento e a busca por soluções para integrar aqueles que não têm acesso à rede, ou que estão enfrentando outras dificuldades.
Educar com exclusão é um contrassenso. Isso deveria ser uma obviedade, infelizmente, estamos longe disso. Outra questão é que quando falamos em “educação”, estamos falando de diferentes segmentos de ensino: infantil, fundamental (anos iniciais, primeiro ao quinto anos; anos finais, sexto ao nono anos), médio e superior (que ainda pode ser técnico). Cada um desses segmentos tem particularidades muito importantes. Para educação infantil, não consigo ver opções para a mediação com tecnologias diretamente com os alunos. Talvez nesse primeiro momento, a aposta possa ser na relação da escola ou dos professores com os pais, em orientá-los e conversar sobre o desenvolvimento infantil.
Nos outros segmentos, é preciso refletir sobre aquilo que é viável em cada série. E esse debate não pode ser massificado. Cada professor precisa fazer essa reflexão sobre o seu grupo. Mas, a nossa tradição de pensar integração de tecnologias e educação é pela massificação. Plataformas, manuais, modelos, políticas públicas que chegam de cima para baixo, que não são construídas com o professor: está errado. Seria ótimo se nesse momento isso fosse invertido. Mas pressupõe aceitar que o processo é complexo e exige tempo e estrutura – precisamente o que sempre é negado aos professores.
O ensino remoto já tinha críticos antes da pandemia. Muitos defendem que a presença, o contato, trocas e debate são elementos fundamentais da aprendizagem. Diante do cenário de necessidade de isolamento ou distanciamento social, novas formas de aulas estão sendo pensadas. A educação repensará seus métodos, fará grandes mudanças ou se adaptará esperando a possível volta à “normalidade”?
O momento atual, que ninguém sabe quanto tempo vai durar, exige que a gente esteja longe uns dos outros, para nos protegermos. Essa não é uma realidade negociável. Será preciso repensar, sim, a forma de estarmos com nossos alunos para continuar nosso trabalho. O que pode nos aproximar nesse momento são as tecnologias.
Mas eu acredito que uma pergunta deveria nos orientar: que educação faz sentido em tempos de pandemia? Será que a gente deveria focar em “vencer o plano de ensino” para poder dar a disciplina por encerrada ao fim do ano letivo? Acho que se esse for o foco agora, vamos fazer algo paliativo, e não de fato educativo.
O ideal seria que agora houvesse investimento na formação dos professores para isso (e no acesso dos alunos). Para que eles possam se apropriar dessas tecnologias de forma crítica e criativa; possam pensar sobre as peculiaridades dos seus grupos. Mesmo que, para isso, os alunos ficassem sem aula por um período. As soluções rápidas só poderão ser rasas, porque serão, necessariamente, massificadas e desconsiderariam o que há de mais precioso para o processo educativo, que são as pessoas que compõem cada comunidade de aprendizagem.
As tecnologias podem sim nos aproximar, mas para isso é preciso conhecê-las, saber de suas contradições (por exemplo, o que elas significam em relação à privacidade de dados dos alunos/professores). E, claro, precisa que toda turma esteja conectada. É importante, para a gente ter uma EAD de qualidade, que os professores saibam escolher os momentos de entrega estática de conteúdo, de contatos síncronos com os alunos, de espaços de discussão assíncrona, etc. Sobre como a educação atravessará esse momento, não haverá unidade. A realidade da educação é muito diversa. Há escolas particulares de diferentes abordagens pedagógicas, há escolas públicas com realidades muito distintas, há as universidades com cursos de humanas, artes, saúde.
Importantes reflexões e esclarecimentos. Grato pela matéria !!