Dairan Paul
Doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS
Cobrir diariamente o registro de mortes por Covid-19 não é tarefa das mais fáceis. Menos simples ainda é o exercício de olhar para trás, em busca de explicações sobre a origem estrutural da pandemia. Essa visão complexa e interrogativa falta aos meios de comunicação tradicionais, diz Helena Martins, professora da Universidade Federal do Ceará. Em entrevista ao objETHOS, ela defende que a crise sanitária não é um fenômeno de ocasião, mas uma tragédia anunciada.
Para a pesquisadora, é preciso buscar outras saídas que vão além da tão sonhada vacina contra o coronavírus. Na falta da discussão – que deveria ter como cerne a ação humana destrutiva sobre a natureza –, uma contrapartida possível é a recorrência de mais pandemias no futuro, como já alertam epidemiologistas e ambientalistas.
É por isso que a crise atual não deixa de ser também um espaço de disputas, incluindo a participação de grupos midiáticos. Como exemplo, Martins identifica um discurso da Rede Globo que considera contraditório: “se, por um lado, há críticas sobre como o governo lida com a pandemia, por outro, a mesma emissora adere ao discurso ultraliberal de Paulo Guedes”. O problema, como reforça a entrevistada, é que política e economia não são indissociáveis.
Autora de Comunicação em tempos de crise (Expressão Popular, disponível online) e uma das organizadoras de Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news (Veneta), ambos publicados neste ano, Helena Martins também atua à frente do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, integrando o conselho diretor. É doutora em Comunicação Social pela Universidade de Brasília.
Na entrevista a seguir, a pesquisadora se vale dos estudos em Economia Política da Comunicação para discutir diferentes temas: o impacto causado pela concentração de oligopólios midiáticos na cobertura da pandemia, plataformas e sua aliança com a indústria da desinformação, e a proteção de dados pessoais enquanto direito fundamental às sociedades democráticas.
“Não acredito que a parceria do jornalismo tradicional com Google e Facebook seja capaz de resolver o problema da desinformação. Ela pode gerar informação, sim, mas muito monopolizada”
Seus trabalhos se detêm sobre a arquitetura dos sistemas de comunicação, o papel estratégico das tecnologias e a concentração em monopólios e oligopólios midiáticos. Como você avalia a cobertura sobre a pandemia considerando essas trajetórias históricas de interesses e relações de poder que afetam, em alguma medida, a ética e a prática jornalística?
No início da pandemia, verificamos uma cobertura muito tensionada. Vários grupos econômicos, que também são midiáticos, se posicionaram de forma mais crítica ao isolamento social. Sobretudo em relação possível agravamento da crise, que já estava em curso. O Intervozes fez um levantamento sobre algumas coberturas e verificou que veículos ligados a igrejas e ao fundamentalismo religioso, assim como programas policialescos, diminuíram a gravidade da crise sanitária.
Outra questão é a forma como a pandemia é apresentada e quais saídas a ela são discutidas. Grupos midiáticos, no geral, a tratam como algo ocasional, uma tragédia não-previsível. Na minha opinião, não se trata disso. Vários estudiosos, como epidemiologistas e ambientalistas, discutem as transformações no próprio sistema capitalista a partir do avanço sobre a natureza e a destruição das áreas verdes. A crise ambiental que temos vivenciado é compreendida como fruto essencialmente da ação humana – o antropoceno. Por isso, esses pensadores e pensadoras têm alertado que a pandemia é uma expressão da própria crise do sistema capitalista , e de sua dissociação entre sociedade e natureza. A globalização neoliberal, a mistura de culturas – e, portanto, também de alimentos, bactérias, vírus –, tudo isso precisa ser analisado como parte de uma totalidade social, e não como algo ocasional ou surpreendente. Tanto é que alguns autores também apontam para a possibilidade de outras pandemias com o passar do tempo.
Essa visão mais complexa e interrogativa sobre as origens estruturais do problema que estamos vivendo não aparece nos meios de comunicação tradicionais. Em geral, há uma cobertura centrada no número de casos, na medida de segurança, de saúde, na oposição ou apoio ao próprio governo Bolsonaro… mas que não consegue nem se interrogar sobre as origens da pandemia e, derivado disso, também se questionar sobre outras saídas para além da vacina. Há toda uma transformação estrutural na sociedade que precisaria ser discutida.
Para tornar isso mais concreto, acho que valeria falar da questão econômica. A pandemia mostrou a necessidade de o Estado ter investimentos sólidos em saúde e educação. Ela desnudou vários argumentos do neoliberalismo que são constantemente defendidos pela mídia tradicional, Rede Globo à frente. É o caso do limite de investimentos públicos, que ficou conhecido aqui no Brasil como teto de gastos. Como estamos diante de uma crise econômica profunda, sem nenhuma possibilidade de recuperação em curto prazo, o debate que é feito segue sendo de corte de gastos, de reformas administrativa e de criminalização – eu coloco nestes termos, inclusive – dos servidores e servidoras públicas, como se eles fossem caros e gerassem o problema da falta de recursos do próprio Estado.
Não se coloca em questão, por exemplo, as grandes fortunas e a dívida e pagamento para bancos. Então há temas que acabam não vindo à tona no debate público, deixando de pautar discussões na sociedade, porque limitados pela mídia.
No caso da Globo, isso contradiz o próprio posicionamento que ela, em geral, tem adotado diante do governo Bolsonaro. Se, por um lado, há uma crítica ao governo –denúncia de corrupção envolvendo Jair Bolsonaro e sua família, como o presidente lida com a pandemia e diminui sua gravidade etc. –, por outro, esse mesmo grupo acaba aderindo ao discurso ultraliberal de Paulo Guedes [atual Ministro da Economia]. Entram num conflito, porque pode criticar politicamente o governo, mas apoia a sua agenda econômica. E política e economia não podem ser separadas.
Algumas leituras apostam na valorização do jornalismo e da informação de qualidade em momentos de crise. Como você situa o papel da instituição jornalística em meio à pandemia?
Durante a última década, visualizamos no Brasil um processo que chamei na minha tese de doutorado de “dispersão da audiência”, seguindo a convergência midiática e os estudos sobre televisão, particularmente do professor César Bolaño (UFS). Continuamos a ter uma audiência bastante concentrada nos veículos de comunicação tradicionais. Mas, se no começo dos anos 1990 a TV Globo tinha mais de 70% da audiência, desde 2014 ela estacionou na casa dos 30, 34 pontos. E muito dessa audiência perdida foi para canais novos, menores, locais, e também outros dispositivos e formas de acesso, como o streaming.
Além desse processo de dispersão da audiência, também vivenciamos, como parte de uma crise política mais ampla, uma profunda crise da própria instituição midiática. Ela é bastante atacada e descredibilizada por discursos reacionários, que buscam superar a mediação de instituições por meio de um contato direto entre agente político e população. É o caso de expressões da ultradireita, como o bolsonarismo e o próprio Donald Trump.
Mas destaco que a crise midiática também deriva da própria atuação da mídia. Tivemos muitos exemplos de práticas tendenciosas, de invisibilização de sujeitos, movimentos, regiões e culturas inteiras do nosso próprio país. Acho que essa perda de credibilidade tem muita conexão com o que ocorreu no Brasil nos últimos anos – particularmente, desde 2013, quando houve uma crítica muito contundente à cobertura daquele momento [em referência às Jornadas de Junho]. E, depois, com o golpe de 2016. Então sim, acho que a mídia também atuou para perder essa credibilidade.
Agora, a internet também não é um espaço apenas de pluralidade e diversidade. Embora isso exista, há a atuação de agentes políticos e econômicos de uma maneira coordenada, o que influencia o debate nas redes e diversos processos de fake news. Em síntese, eu diria que também na internet se disputam sentidos da vida social, como visibilidade e verdade.
Esse caldo todo faz com que o momento de pandemia seja também uma disputa entre agentes: por um lado, meios de comunicação tradicionais querem se arvorar como donos da verdade, mais confiáveis, e muitas vezes generalizam o que existe na internet como não-profissional. Por outro lado, a própria mediação da tecnologia fortalecida neste momento tem feito com que muitas atividades de trabalho e debates políticos migrem para as redes sociais. Acho que é uma disputa de rumos, e por mais que os dados mostrem que o brasileiro ficou, em média, uma hora a mais do que já ficava na frente da televisão, temos visto um crescimento da busca de conteúdos em outros espaços, como aplicativos e streaming. A pandemia, de uma forma muito geral, intensifica e acelera o processo de penetração das mediações tecnológicas nas atividades sociais.
Outra questão é o agravamento da exploração de trabalho sobre os jornalistas durante a crise sanitária. Como você percebe essas alterações na rotina do profissional da imprensa?
A inserção da tecnologia na sociedade, infelizmente, tem sido guiada por um viés hegemônico de intensificar a precarização e a exploração do trabalho. Exemplos mais conhecidos dessa mediação por plataformas são Uber e Rappi. Vemos cada vez mais a tecnologia sendo utilizada para flexibilizar contratos – ou mesmo para afirmar a inexistência deles. Isso não é diferente no caso do jornalismo.
O trabalho jornalístico já vinha sendo alterado pelos processos de digitalização e convergência midiática. Trabalhadores e trabalhadoras fazem pautas para rádio e impresso, gravam podcast, entram ao vivo em alguma rede, enfim. Isso é intensificado durante o processo de pandemia. Outra questão é a própria colonização do tempo livre das e dos trabalhadores por parte das empresas. Quem pode fazer home office está trabalhando o tempo todo. A empresa cobra respostas mesmo fora do horário específico da tua jornada de trabalho.
Também me parece relevante o fato de que muitas empresas não garantem a saúde dos trabalhadores. Aqui no Ceará houve muita denúncia em relação às condições de trabalho – inclusive casos de Covid registrados em redações. Acho que existe toda uma lógica de desconsiderar esse trabalhador como sujeito de direitos, para sempre explorá-lo ao máximo dentro de suas capacidades.
Você também organizou recentemente um e-book sobre desinformação, numa parceria do Intervozes com a editora Veneta. Gostaria que você comentasse as possíveis saídas para o problema das fake news. O combate a elas passa, necessariamente, pela aliança do jornalismo com plataformas como Google e Facebook? Há outros caminhos possíveis ou desejáveis?
O combate às fake news, na minha opinião, passa por garantir mais pluralidade, diversidade e educação para a mídia. Para isso, precisamos mudar a economia política das comunicações – particularmente, das plataformas digitais. Não acredito que a parceria do jornalismo tradicional com Google e Facebook seja capaz de resolver o problema da desinformação. Ela pode gerar informação, sim, mas uma informação muito monopolizada, e nós sabemos que, em geral, ela tem objetivos políticos e econômicos. Não à toa, há inúmeros casos de desinformação ao longo da nossa história, de modo que eles não foram criados com a internet.
Acho que as plataformas devem ser cobradas para fazer educação para a mídia e promover informações, mas, sobretudo, para garantir transparência. Hoje o problema da desinformação relaciona-se com a forma como as plataformas desenham algoritmos e operam, capturam e comercializam dados. Parece-me que nossa agenda tem que ser no sentido de garantir mais transparência para que não seja consolidada uma lógica de que os donos da mídia – os tradicionais e os novos – sejam os fiéis da balança da verdade na sociedade.
A pandemia parece tornar ainda mais clara a disparidade no acesso à internet, uma discussão que o Intervozes articula ao direito à comunicação. Quais desafios integram uma agenda pela democratização das comunicações atualmente?
O que a pandemia revela de forma muito bruta é o fato de que a desigualdade social não apenas é reafirmada, mas se amplia a partir do critério do acesso. Se a pessoa não possui internet, não tem educação, cultura, lazer e até trabalho. Uma matéria da Folha de S.Paulo mostra que o home office é o novo indicador da desigualdade econômica no Brasil. Trabalhadores mais qualificados, em regiões mais prósperas, puderam trabalhar em casa devido à disponibilidade de acesso, ao contrário de outros. O Intervozes também realizou uma pesquisa junto com a Conaq [Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas], mostrando como as comunidades quilombolas estão desprovidas de acesso. Dados da TIC Domicílios indicam que essa questão é marcada por vieses de classe, raça e território. Sem dúvida, é uma pauta central.
A utilização de dados também se revelou de forma muito dramática na pandemia. Iniciativas de monitoramento, georreferenciamento e acesso aos nossos corpos para saber se estamos com febre são baseadas em tecnologias de informação e comunicação. Práticas de captura e tratamento de dados sob um viés de vigilância são outro exemplo. O risco é naturalizá-las como certo solucionismo tecnológico, reafirmando uma perspectiva, da qual discordo, de que há uma neutralidade nas tecnologias. Precisamos afirmar a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, e não apenas individual, para que possamos ter uma sociedade minimamente democrática.