Andressa Oliveira
Jornalista, mestre em Letras pela UESB e pesquisadora associada do ObjETHOS


A menina Sophia Ângela Veloso, de 11 anos, teve seu corpo marcado pela violência, enquanto tentava chegar a escola, na comunidade do Guarabu, no Rio de Janeiro. Segundo a perícia, Sophia foi vítima de estupro e em seguida foi esfaqueada por Edilson Amorim dos Santos Filho, de 47 anos, ex-cunhado do pai da vítima, que confessou o crime e foi preso por estupro de vulnerável, homicídio e ocultação de cadáver.

Histórias como essa fazem parte do noticiário brasileiro, que semanalmente retrata a explosão de casos de violência sexual no Brasil. Na última semana, os principais jornais do país, (G1, UOL e Folha de São Paulo) relataram o caso de um pai que foi preso, suspeito de cometer abuso sexual contra a própria filha, que estava internada na UTI de um hospital, em São Bernardo do Campo, na capital paulista.

Nesse cenário, o que fazer quando a violência encontra os limites éticos do jornalismo? Na última terça-feira (11/06), o programa Profissão Repórter, vinculado à Rede Globo, abordou o tema “Estupro de Vulnerável” e mostrou os desafios da reportagem para realizar a cobertura do Caso Sophia e a apuração da notícia sobre a adolescente que sofreu abuso sexual no hospital. Sob a direção de Caco Barcellos e dos repórteres Guilherme Belarmino e Mayara Teixeira, o programa acompanhou a homenagem realizada pela escola que Sophia frequentava, ouviu os familiares da vítima e mostrou as últimas imagens da menina acompanhada por Edilson Amorim, assim como a fotografia da vítima sorrindo.

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, estabelece no Capítulo II, Art. 6º, inciso II, que é dever do jornalista “divulgar os fatos e as informações de interesse público”. Isso significa, que a produção da notícia deve ser pautada a partir do resultado que a reportagem pode produzir para a sociedade. No programa, Caco Barcellos afirma que “são histórias delicadas, difíceis de contar, mas importantes como alertas para proteger crianças e adolescentes”. O intuito da reportagem, pela fala do jornalista, tinha como objetivo fortalecer, alertar e proteger os mais vulneráveis socialmente.

A reportagem, mesmo comprometida com esse ideal, não se recusou a usar imagens que promovem o sensacionalismo. O jornalista teve acesso a casa onde Sophia sofreu violência e foi morta. Caco Barcellos afirma em determinado momento da reportagem que “ela foi morta nessa casa. Segundo a perícia, ela foi vítima de estupro e depois recebeu diversos golpes de faca”. Na companhia do cinegrafista, Caco também aponta que o banheiro da casa foi o local em que a menina foi assassinada.

A reportagem, na medida em que revela os detalhes da morte de Sophia, também utiliza às imagens que vão sendo captadas para construir o sentido da narrativa. A menina é violentada também no imaginário social, que com a ajuda da linguagem e das imagens recebem suporte para reproduzir a violência.

Como afirma a jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl (2004), a exposição diante do fluxo incessante das representações realizadas pela televisão, faz com que a sociedade fique cada vez mais distante da capacidade de pensar, ou seja, de questionar sobre quais foram as instâncias que falharam em proteger a menina Sophia. A consequência dessa ausência de pensamento, de reflexão, produz no imaginário social uma espécie de pensamento ancorado na superficialidade, uma sociedade incapaz de refletir, de agir e de questionar.

Esse fenômeno também se aproxima do conceito de Banalidade do Mal, formulada por Hannah Arendt, que define o mal absoluto como “a falta de pensamento”, ou seja, é a negação da condição humana, a recusa em refletir sobre as implicações éticas e morais das decisões humanas que provoca a banalidade. Enquanto sociedade, é preciso recusar abrir mão daquilo que é humano: a capacidade de pensamento e reflexão.

De volta a análise da reportagem, com a ajuda de um morador da comunidade, o jornalista vai até o local onde o corpo de Sophia foi descartado: A caçamba de lixo de um dos bairros do Guarabu. A matéria cumpriu seu papel de informar a sociedade, mas não apontou caminhos nem informou quais canais de denúncia podem ser acionados em casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.

O segundo caso, reportado pelo programa, apurou as informações que envolvem o caso de um pai, suspeito de cometer abuso sexual contra a filha adolescente de 17 anos. A produção foi conduzida pelo jornalista Guilherme Belarmino, que compartilhou os desafios da notícia no programa, e, quando questionado por Caco Barcellos sobre como iria produzir a reportagem, Guilherme apontou que “para preservar a vítima vamos narrar o que se passa, mas sem mostrar explicitamente a imagem”. O jornalista se refere ao vídeo gravado por uma equipe médica no hospital, que retrata o comportamento abusivo do pai da vítima. E em seguida descreve a violência: “Essa imagem mostra ele com a mão dentro do avental dela, passando as mãos nos seios dela”.

O jornalista também esclarece que “a vítima tem 17 anos. Em casos assim a gente costuma esconder a identidade da vítima para preservá-la, mas nós geralmente mostramos quem é o agressor, porque é informação de interesse público, mas se a gente mostra o rosto do homem, a gente automaticamente identifica a adolescente. Como prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, a prioridade é da criança e do adolescente. A gente preserva o rosto homem, não para protege-lo, mas para preservar a identidade da filha dele”.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estabelece no Capítulo II, Art. 17, o direito ao respeito, que consiste “na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. Desse modo, a preservação da integridade de crianças e adolescentes é um direito assegurado, portanto, imagens que vinculem qualquer tipo de violência contra esses grupos não podem ser exibidas, mesmo diante do argumento jornalístico de interesse público.

Iniciado o processo de apuração, o jornalista consultou as fontes oficiais, entrevistou os delegados responsáveis por conduzir a investigação do crime, e, em seguida, conversou com os profissionais da equipe médica responsável por produzir o vídeo, que permitiu a polícia abrir a investigação. Todos os profissionais tiveram sua imagem e sua identidade preservadas, como estabelecido pelo Código de Ética, no Capítulo II, Art. 5º, que assegura como “[…] como direito do jornalista resguardar o sigilo da fonte”. E por fim, o repórter foi até a casa da vítima para escutar a mãe da adolescente, que negou a violência praticada pelo marido, mesmo diante das imagens exibidas apresentadas pelo repórter.

A cobertura, apesar de retratar com profundidade um dos maiores abismos sociais do país e garantir o sigilo da fonte, bem como preservar a imagem da vítima, também deixou claro que, no jornalismo, não basta afirmar que o abuso e o estupro são crimes, é preciso descrever de maneira detalhada como a violência atravessou o corpo dessas meninas. É preciso imaginar o corpo da menina Sophia esfaqueado em um banheiro em nome do interesse social. É preciso também descrever como uma adolescente foi violentada sexualmente dentro de uma UTI, porque a palavra estupro, em um país que registra 153 casos por dia, 6 casos por hora, cujo a estimativa aponta que 6 em cada 10 vítimas são crianças de 0 a 13 anos, ainda não é suficiente para que a sociedade compreenda o nível de barbárie na qual está acostumada a tolerar.

Os limites éticos enfrentam agora uma fronteira muito tênue: A proteção da imagem deve ser resguardada, mas a descrição da forma como a violência foi praticada não assegura a proteção contra o constrangimento da vítima e incide diretamente na forma como a sociedade constrói essa violência. Como destaca Meditsch (1997, p. 10), “[…] o jornalismo serve ao mesmo tempo para conhecer e reconhecer”. O jornalismo reconhece que as vítimas de violência sexual devem ter sua identidade protegida, mas não impede que a violência seja reproduzida a partir da linguagem.

É preciso então questionar quanto vale a vida de uma mulher ou de uma menina no Brasil? Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2022, o país registrou o maior número de estupro e estupro de vulnerável da história, com 74.930 vítimas. Em 24,2% dos casos, as vítimas eram homens e mulheres com mais de 14 anos. E em 75,8% dos casos, a vítima era incapaz de consentir, seja pela idade (menores de 14 anos), ou por outros fatores como doenças ou deficiência física. 88,7% das vítimas são do sexo feminino, enquanto 11,3% são do sexo masculino.

O Disque 100 (Disque Direitos Humanos) também registrou mais de 17,5 mil denúncias de violações sexuais contra crianças e adolescentes entre janeiro a abril de 2023, um aumento de 68% quando comparado ao mesmo período de 2022.

Diante de tal cenário, que coloca em evidência a ineficiência do Estado e da sociedade em garantir a segurança daqueles que estão vulneráveis socialmente, o Câmara dos Deputados não se intimidou ao colocar em votação um novo Projeto de Lei (PL1904/2024), que equipara o aborto praticado depois da 22ª semana de gestação ao homicídio simples, tipificado pelo Código Penal de 7 de dezembro de 1940. A proposta, elaborada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), altera os artigos, 124, 125, 126 e 128 do Código Penal. Entre as mudanças, o PL prevê pena de 6 a 20 anos de detenção para mulheres, o dobro daquela estabelecida para o criminoso, que atinge de 6 a 10 anos.

Ao acessar o Projeto de Lei, o cidadão pode participar da votação de uma enquete que está disponível na página da Câmara e oferece cinco opções de voto: 1) concordo totalmente, 2) concordo na maior parte, 3) estou indeciso, 4) discordo na maior parte ou 5) discordo totalmente. Até a data do fechamento desse comentário (17/06), 88% dos votos (941.591) discordam totalmente, enquanto 12% (115.794) concordam totalmente com o projeto. Apesar da maior parte da população brasileira discordar do projeto, é válido destacar que mais de 100 mil pessoas afirmaram que concordam integralmente com o PL que condena mulheres a uma pena maior do que aquela prevista para o estuprador.

Fonte: Enquete registrada pela Câmara dos Deputados sobre o PL1904/2024. Disponível em: https://www.camara.leg.br/enquetes/2434493/resultados Acesso em 17/05/2024

Ao retomar o pensamento de Hannah Arendt, a banalidade do mal se efetiva quando uma sociedade, representada pelas suas lideranças políticas, além de não proteger os grupos vulneráveis como mulheres e crianças, viabiliza leis que corrobora com a prática da violência. A vítima de um estupro poderá ser reificada, tanto pelo crime que sofre, quanto pela condenação que lhe será imposta. A ausência de pensamento atinge sua forma absoluta quando os dados estatísticos e a subnotificação de casos são ignorados e recusados na elaboração de tal projeto de poder.

Diante desse cenário, o jornalismo precisa atuar como um agente de transformação social. Como afirma Eduardo Meditsch (1997, p. 13) “[…] a manipulação do sistema democrático, a disparidade crescente entre o topo e a base das sociedades, a disseminação dos preconceitos, estereótipos e ideologias dos poderosos não são criações do Jornalismo, embora ele participe de tudo isso. Como produto social, o Jornalismo reproduz a sociedade em que está inserido, suas desigualdades e suas contradições. Nenhum modo de conhecimento está completamente imune a isto”.

Nesse ínterim, é necessário pensar novas práticas que contribuam com o fortalecimento dos limites éticos e a proteção dos direitos de mulheres e meninas no Brasil. Em 2020, a equipe de redação da plataforma Universa do site de jornalismo UOL, formada por mulheres, elaborou e publicou o Manual Universa Para Jornalistas – Boas práticas na cobertura de violência contra mulher, cujo o intuito é orientar os profissionais da área da comunicação a produzirem reportagens que respeitem os limites das leis e encorajem as vítimas a buscarem justiça e também contribuir sobre as possíveis formas de posicionamento da mídia frente aos crimes de violência contra a mulher.

O Manual (2020, p. 9) destaca que “é fundamental informar respeitando os parâmetros éticos e os processos de apuração condizentes às regras do bom jornalismo”, mas ressalta que essa medida apenas não resolve os problemas da cobertura jornalística. Para que ocorra mudanças sociais é necessário “desconstruir as culturas nas quais a violência se insere e fomentar o debate do dia a dia”.

O Manual (2020, p. 14), ressalta ainda que a conduta geral dos veículos de imprensa deve ser pautada pela apuração dos fatos, a consulta de fontes oficiais e não oficiais, a empatia ao narrar aos fatos, o respeito pela dor dos familiares, a presença do advogado das partes envolvidas e a busca por fontes qualificadas, além de destacar que as narrativas das matérias jornalísticas precisam estar humanizadas porque “a mulher em situação de violência não se define somente pelo crime que viveu”.

O Manual também aborda a proteção no âmbito da preservação da imagem da vítima e destaca que o jornalista tem o dever de informar a vítima sobre os possíveis efeitos da publicação da matéria que pode gerar “muita audiência e repercussão” (p. 16), assim como, também se constitui um dever do jornalista apurar se houve falha do Estado em relação a “assistência e reparação às vítimas” (p. 17), uma vez que, o Estado é o responsável por garantir rede de proteção a todo cidadão. “A sociedade, as mulheres em particular, precisa acreditar na possibilidade da interrupção da violência. A mídia pode ajudar apresentando os caminhos para uma eventual denúncia e divulgando serviços de referência no acolhimento e assistência às vítimas” (p. 18).

Os limites éticos no jornalismo brasileiro confrontam não somente a capacidade do jornalismo de apurar e narrar os fatos ou escolher preservar as imagens em respeito ao Código de Ética e às leis, mas também apontam que o sensacionalismo pode, muitas vezes, ser revestido por uma linguagem que carrega interesse social. É preciso reforçar que o jornalismo pode atuar como um agente de transformação social e contribuir na luta pela proteção das vítimas de violência sexual. No entanto, esse interesse precisa estar amparado por uma prática profissional que se aprofunda nas causas dos problemas e não apenas na narrativa dos fatos ou na descrição detalhada da violência.

Referências:

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo. Editora Companhia das Letras, 1999.

BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004 (Coleção Estado de Sítio).

MEDITSCH, E. Jornalismo como Forma de Conhecimento. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, São Paulo, v. 21, n. 1, 2012. DOI: 10.1590/rbcc.v21i1.956. Disponível em: https://revistas.intercom.org.br/index.php/revistaintercom/article/view/956 . Acesso em: 10 set. 2023.