Carlos Castilho

Jornalista, doutor em Mídias do Conhecimento (UFSC) e pesquisador associado do objETHOS

Esta pergunta está no centro da polêmica sobre pagamento de notícias jornalísticas inseridas no fluxo de mensagens trocadas em redes sociais digitais. A discussão envolve a grande imprensa, as principais plataformas de comunicação na internet e governos em quase todo o mundo. O problema é que a polêmica está centrada em questões financeiras, deixando de lado o fato de que uma notícia é algo muito diferente de um pacote de arroz, de um litro de gasolina ou uma tonelada de aço.

Como os principais protagonistas da discussão se baseiam em dados quantitativos exibidos sem a necessária transparência, a margem para desencontros e dissonâncias cognitivas é muito alta. A grande imprensa e os governos têm poucas informações sobre a realidade da relação entre notícia e publicidade nas redes sociais. Estas, por seu lado, têm estes dados, mas os omitem ou escondem intencionalmente porque sabem que a falta de transparência as beneficia.

A notícia é um tipo específico de informação caracterizado pelo fato de ser inédita para o público para o qual ela é destinada1. A informação tem duas características próprias:

  1. Ela é um bem imaterial definido como ‘não rival’ (tradução literal da expressão non rival, no jargão economês anglo saxão) e
  2. Um bem produzido nos ‘ombros do gigante” (on the giant shoulders), outro termo cunhado pelos especialistas e pesquisadores no campo da economia política da informação.

Um bem ‘não rival’ é aquele que não desaparece ao ser consumido. Uma notícia de jornal não desaparece depois de lida. O jornal, o noticiário de rádio ou TV, podem deixar de existir depois de vendidos ou transmitidos, mas a notícia lida, ouvida ou visualizada fica na memória do leitor, ouvinte ou telespectador. O contrário acontece com bens como uma maçã, gasolina ou minério de ferro, que uma vez consumidos deixam de existir como um produto.

‘Nos ombros do gigante’

Além disso, uma notícia é ao mesmo tempo insumo e resultado, ou seja, ela está sempre baseada noutras notícias e por sua vez serve para alimentar novos dados, fatos e eventos. Este processo que é contínuo e interminável é essencial à produção de conhecimento por indivíduos e comunidades, através dos ‘ombros do gigante”2, uma metáfora para indicar como uma notícia assume novos significados quando é remixada ou recombinada entre pessoas.

Apesar das evidências em contrário, várias instituições tentaram colocar uma etiqueta de preço na notícia. A mais consistente de todas elas foi a divulgada em outubro de 2023 pelo Grupo Battler, uma organização norte-americana especializada na pesquisa de temas complexos. O Grupo Battler divulgou o resultado de uma pesquisa de dois anos o qual garante que os conglomerados Meta (dona do Facebook e Instagram) e Alphabet (dona do Google e Youtube) deviam pagar respectivamente US$ 1,9 bilhão ( cerca de 9,7 bilhões de reais) e US$ 11 bilhões ( cerca de R$ 56 bilhões) para veículos de imprensa dos Estados Unidos como compensação pela reprodução de notícias jornalísticas em redes sociais virtuais.

A pesquisa usou uma metodologia chamada Teste Randômico Controlado (Randomized Control Trial – RCT)3 e aplicado pela empresa suíça Fehr Advice & Partners AG, com o objetivo de estimar o valor das receitas da publicidade de Facebook e Google, bem como fixar uma repartição igualitária dos valores obtido entre as redes e a imprensa. Agora em 2024, usando a mesma metodologia, o pesquisador inglês Jonathan Heawood4, diretor da Public Interest News Foundation, com sede em Londres, estimou em 1,9 bilhão de libras esterlinas (cerca de 12,3 bilhões de reais) o montante anual que as redes deveriam pagar a profissionais e órgãos da imprensa britânica pela veiculação online de notícias jornalísticas.

Obviamente, tanto a Meta como a Alphabet qualificaram como irrealistas os dados apresentados pelo Grupo Battler e se negaram a levá-los em consideração em negociações com empresas jornalísticas. As duas gigantes da tecnologia digital acharam inicialmente também exagerados os números propostos pelos governos da Australia e do Canadá, países com os quais acabaram firmando acordos de pagamento de direitos pela reprodução de notícias.

O Código de Negociação (News Media Bargaining Code) acertado entre as redes e o governo australiano em 2021 prevê pagamentos anuais de US$ 140 milhões a serem repassados a jornalistas independentes e conglomerados jornalísticos. O maior beneficiado pelo Código de Negociação foi o mega conglomerado News Corporation, do bilionário Rupert Murdoch, que ficou com quase 85% do dinheiro pago pelas redes. O acordo das plataformas digitais com o Canadá, conhecido como Online News Act estabelece negociações diretas com as empresas jornalísticas, cabendo ao governo a mediação em caso de impasse.

A notícia como bem público

Há vários outros países discutindo as relações entre redes sociais e a imprensa como é o caso dos Estados Unidos, Inglaterra, Brasil e União Europeia. Todos eles procuram resolver o impasse com base em números, o que não resolve o problema. Tanto na Australia como no Canadá, o Facebook e Google estão reduzindo ao mínimo a republicação de notícias, o que tende a tornar insignificantes os montantes pagos a jornalistas e empresas.

As notícias acabam entrando nas redes através de postagens feitas por usuários citando fontes jornalísticas, o que dificulta o enquadramento do material publicado como uma cópia ilegal. Os profissionais autônomos e empresas jornalísticas, aparentemente, ainda não se deram conta de que as redes sociais estão se transformando no espaço público onde as notícias circulam movidas pelo seu compartilhamento entre as pessoas.

Dentro do espaço das redes, as notícias assumem um caráter notadamente público, ou seja, elas se tornam um patrimônio de todos os que as compartilham. Neste contexto, os acordos baseados na monetização da notícia podem perder eficácia a curto prazo, porque os negociadores não levam em conta as características especiais da informação digital.

A questão central no debate sobre regulamentação das redes sociais não deveria ser a precificação da notícia como base financeira para dividir receitas. O mais importante é discutir como socializar o uso comercial de um bem público que, por natureza, pertence a todos nós.

Notas

  1. A notícia é definida aqui como um tipo específico de informação caracterizado pelo seu ineditismo para seu público-alvo. Informação é um número, fato ou evento contextualizado. O número 10 é um dado, 10 mortos é uma informação, 10 mortos num acidente é uma notícia. A notícia pode perder seu ineditismo, passando a ser uma informação, que é durável. ↩︎
  2. A metáfora ‘sobre os ombros do gigante’ foi usada pela primeira vez em 1675 pelo físico e matemático Isaac Newton para expressar que suas descobertas científicas foram possíveis graças a outros pesquisadores que o antecederam. A frase original de Newton foi: “If I have seen further it is by standing on the shoulders of Giants”. (Eu consegui ver mais longe ao subir nos ombros de Gigantes). Mais detalhes em Benkler, Yochai. The Wealth of Networks, pag 36 e 37. Yale University Press, New Heaven, USA. 2006. ↩︎
  3. Teste Randômico Controlado (RTC) usado pelo Grupo Battler submeteu usuários de redes sociais a três configurações distintas de uma página web: com um anúncio ao lado de uma notícia; notícia sem anúncio e a mesma página com anúncio e sem notícia. ↩︎
  4. O valor foi mencionado por Jonathan Heawood durante sua participação no painel O Valor da Notícia, realizado durante o Festival Internacional de Jornalismo realizado em Perúgia, na Itália entre 17 e 21 de abril passado. ↩︎