Renatha Giordani
Jornalista, doutoranda do PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS

As enchentes no Rio Grande do Sul, além de causarem imenso sofrimento à população gaúcha, desencadearam a proliferação de notícias falsas que atrapalharam a ajuda às vítimas nas últimas semanas. Essa arma política perigosa, utilizada por oportunistas e extremistas, busca minar a confiança nas instituições, semear discórdia e, em última análise, lucrar com um sistema complexo de desinformação.

O episódio no Rio Grande do Sul serve como um alerta urgente e evidencia uma problemática: a falta de regulamentação das plataformas digitais cria um terreno fértil para a proliferação de desinformação e manipulação da população em prol de determinados grupos. A tragédia brasileira ecoa os debates em curso na Europa e nos Estados Unidos, onde a regulação das big techs é vista como crucial para proteger a democracia e a sociedade, principalmente, em períodos eleitorais.

O estudo do NetLab, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), expôs a magnitude da crise: 381 anúncios fraudulentos e 51 anúncios com desinformação sobre as enchentes circulavam livremente no Instagram e Facebook, todas plataformas do grupo Meta. 

O relatório apresenta os seguintes objetivos de desinformação nas redes: afirmar que a resposta governamental tem sido insuficiente; negar a relação entre os eventos e as mudanças climáticas; inserir a tragédia nas pautas morais e em teorias da conspiração; inflar o papel de seus aliados na resposta à crise; se beneficiar da tragédia através de autopromoção, pedidos de doação e fraudes.

De acordo com o NetLab, “tais conteúdos atrapalham trabalhos de assistência à população atingida pelas enchentes e são utilizados por personalidades que buscam lucrar com a tragédia, bem como obter engajamento ou apoio político. Ao influenciar a política nacional por meio da disseminação online, a desinformação climática se tornou um dos principais motores da tragédia”. 

A situação é agravada pela postura das grandes empresas de tecnologia, como X (antigo Twitter), Meta, Telegram e Google, que operam em um vácuo regulatório, resistindo a prestar contas à sociedade civil ou às autoridades eleitorais. A ausência de uma regulamentação eficaz permite que as big techs continuem promovendo desinformação sem sofrer as devidas consequências. Um exemplo recente, é o episódio envolvendo Elon Musk e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que catalisou reações contrárias à regulamentação no Brasil. Musk tem sido um crítico ferrenho das tentativas de regulação, frequentemente em nome da “liberdade de expressão”. No entanto, suas ações revelam uma preocupação maior com os próprios interesses comerciais da plataforma. 

Como consequência, o PL 2630 – em discussão há quatro anos – voltou a ser atacado e teve o texto descartado pela Câmara dos Deputados. Enquanto isso, no resto do mundo, a regulação das plataformas tem sido uma prioridade crescente. O escrutínio sobre o papel dessas empresas na disseminação de desinformação e na manipulação do discurso político tem levado a esforços regulatórios para estabelecer mecanismos de supervisão realmente eficazes para a manutenção do sistema democrático. 

A resposta governamental à Desinformação no Sul

A resposta governamental à desinformação sobre as enchentes incluiu um ofício enviado pelo ministro Paulo Pimenta ao ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, solicitando a apuração de ilícitos e a responsabilização das pessoas propagadoras fake news. O documento destaca o impacto negativo dessas narrativas na credibilidade das instituições envolvidas no socorro às vítimas.

“Os conteúdos afirmam que o Governo Federal não estaria ajudando a população, de que a FAB não teria agilidade e que o Exército e a PRF estariam impedindo caminhões de auxílio. Destaco com preocupação o impacto dessas narrativas na credibilidade das instituições como o Exército, FAB, PRF e Ministérios, que são cruciais na resposta a emergências. A propagação de falsidades pode diminuir a confiança da população nas capacidades de resposta do Estado, prejudicando os esforços de evacuação e resgate em momentos críticos”, afirma o ofício.

Na última terça, 21, a Advocacia Geral da União e as plataformas Google/YouTube, Meta, Tik Tok, X, Kwai e LinkedIn assinaram um protocolo de intenções para combater a desinformação sobre a catástrofe. O documento, válido por 90 dias, visa promover a integridade da informação relacionada ao desastre, comprometendo-se a disponibilizar recursos e mecanismos de acesso à informação oficial, bem como a tomar medidas contra conteúdos que violem essa integridade. 

Segundo o site *Desinformante, as plataformas se comprometem a garantir e promover a integridade das informações e a combater a desinformação em seus domínios. Para alcançar isso, as empresas precisam oferecer recursos e mecanismos que facilitem o acesso à informação oficial sobre a calamidade e integrar essa temática em suas atividades de verificação de fatos. Além disso, devem adotar medidas contra conteúdos que comprometam a integridade das informações relacionadas à tragédia.

Porém, o cenário está longe de ter uma resposta satisfatória para a regulação e a preservação da soberania nacional em relação às governanças eleitorais e da internet. A ausência de regulação permite que a desinformação se espalhe, minando a confiança pública nas instituições. De acordo com o relatório do NetLab, a desinformação sobre as tragédias no sul estavam concentradas em políticos e personalidades de extrema direita. Como mostra o esquema de doações para o Instituto Cultural Floresta abaixo:

Fonte:  Netlab – Enchentes no Rio Grande do Sul: uma análise da desinformação multiplataforma sobre o desastre climático

Pesquisa evidencia a presença das plataformas em processos sobre desinformação no TSE em 2022

O esquema acima desenha o quadro de como o complexo da desinformação tem atuado no Brasil. Uma pesquisa realizada em 2022-2023 teve como foco a análise das ações julgadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições presidenciais de 2022, demonstrou que a comunicação no contexto da desinformação é o principal ponto das controvérsias que chegaram ao TSE durante o período eleitoral. 

Do total de 1.764 ações impetradas no TSE entre 16 de agosto e 2 de outubro de 2022 (1T, 819 ações) e 3 e 31 de outubro (2T,  945 ações), 607 corresponderam aos processos judiciais envolvendo a Comunicação e Presidência da República. Nesses casos, o pressuposto é claro: tais conteúdos extrapolaram os limites da liberdade de expressão, afetando a integridade do processo eleitoral e a imagem dos candidatos.

Os dados comprovaram que as plataformas digitais foram as protagonistas dos processos, enquanto o jornalismo não foi objeto prioritário das ações em suas interpretações como instituição, organização, campo profissional ou discurso. 

O pleito presidencial de 2022 teve como principal característica uma polarização intensa entre atores e partidos na disseminação de informações falsas e tentativas de manipulação cognitiva. Ao passo que os perfis ligados à extrema direita assumiram a estratégia de guerrilha digital, o que representou o principal desafio a ser enfrentado para garantir uma esfera pública minimamente informada e esclarecida por parte dos reguladores. 

Bolsonaro e seus aliados protagonizaram os processos em relação à disseminação de informações falsas e propaganda política enganosa massivamente distribuída por plataformas digitais. Afora candidatos e coligações, uma regularidade evidente é a citação como corréus das empresas de comunicação centradas na Jovem Pan e em perfis do Twitter, Facebook, Instagram, Tik Tok e Gettr. Em geral, a acusação é a de corroborar para que alguém desempenhe ações supostamente criminosas.

Fica claro que as plataformas não foram rés diretamente, como pessoas jurídicas, mas sim por viabilizar a desinformação em larga escala ao abrigar perfis com conteúdos falsos. Mesmo sem serem rés, elas acabaram arroladas nas sentenças pela responsabilidade de ter abrigado esses e tiveram a obrigação de remover os conteúdos, mesmo os apócrifos, sob pena de multa pecuniária.

As ações analisadas tiveram como único autor a Coligação Brasil da Esperança, de Lula. Ao que parece, a produção de desinformação na eleição presidencial teve um pólo específico, o de Bolsonaro, evidenciado pela onipresença de seus filhos, partidários e apoiadores declarados nas ações. 

Conforme os dados, as motivações das ações não foram da ordem da política strictu sensu, mas envolveram diretamente a tentativa de imputar por meio de desinformação crimes graves ao candidato Lula, com ataques diretos à sua honra, e, por consequência, à sua imagem pública. São de fato situações que fora do contexto eleitoral certamente teriam guarida da justiça comum por se configurarem em crimes de calúnia, injúria e difamação.

As peças questionadas nos autos pela Coligação Brasil da Esperança, produzidas por correligionários de Bolsonaro, continham em seu conjunto uma mensagem falsa, organizada e muito potente, capaz de efetivamente afetar o pleito: Em uma interpretação literal dos sentidos dessas peças, Lula seria cúmplice de assassinato, agressivo, vingativo, envolvido com o crime organizado, anticristão, ditador, fascista, nazista, contra o agro, parceiro da Globo e intolerante com os pobres. 

O que de fato não é, mas precisou ser reparado pelo TSE. Na prática, o TSE assumiu a posição de agência reguladora do ambiente digital durante as eleições, atuando de forma reativa, discricionária e cada vez mais rápida, para tentar garantir a “higidez” do pleito e, em última instância, a sobrevivência da própria democracia. 

Os dados e os recentes acontecimentos possibilitaram entender o mecanismo de atuação da desinformação, contudo, ainda está longe de ser efetivo. Fica evidente neste cenário que a interseção entre tecnologia e política exigirá respostas cada vez mais sofisticadas das instituições democráticas, especialmente quando se trata da proteção da integridade dos processos eleitorais e em momentos de crise humanitária. A recente ação do Tribunal Superior Eleitoral em conjunto com a sociedade civil organizada expôs uma nova camada de desafios enfrentados pela governança eleitoral e da internet, intensificando o debate em torno da regulação das plataformas digitais e empoderamento dos grupos da extrema-direita.

Referências:
poder360.com.br/
bbc.com/portuguese
www1.folha.uol.com.br/
netlab.eco.ufrj.br/
desinformante.com.br/
cartacapital.com.br/