Francisco José Castilhos Karam
Pesquisador do objETHOS e professor na Universidade Federal de Santa Catarina
O jornalismo esteve, dede o início da Modernidade, associado à ideia de democracia. A ideia não é nova, já que antes mesmo da chamada era cristã informações publicizadas faziam parte do compromisso que os governantes da Grécia e Roma antigas tinham com o público. Embora muito diferente da democracia contemporânea – e ainda que se questione sua efetividade e a quem representa hoje -, a ideia de que deve haver um espaço público de controvérsia parece ser o caminho consolidado a partir do conceito de cidadania, tão caro a quem lutou por ele, seja na Revolução Francesa ou diante de governos autoritários, baseados na intimidação e perseguição militares – e todo seu aparato técnico, secreto e total.
Das muitas lembranças do golpe militar de 1964 – a partir do qual muitos cidadãos brasileiros e alguns estrangeiros foram perseguidos física e emocionalmente, torturados, assassinados – a que nunca se pode deixar passar é a de ser memória e testemunho e do compromisso de lutar para que o pior do passado não retorne como possível solução.
Ainda que minoritários, os que bradam pela volta de uma intervenção militar no Brasil esquecem o grau de corrupção e a falta de liberdade a que esteve ligado o regime militar no Brasil entre 1964 e 1985. Ou, então, querem aquele ambiente de novo para que se beneficiem particularmente dele.
Um regime em que não se permitia a investigação jornalística, em que os organismos do estado só investigavam opositores ideológicos – e muitas vezes os prendiam e assassinavam sumariamente – poderia achar mesmo que as coisas iam bem, tipificadas na constatação de um dos ex-generais que ocupava a presidência da República, Emílio Médici. Tal constatação de um dos principais responsáveis por mortes de civis era a de que ao assistir televisão, via que o planeta inteiro tinha problemas, e o Brasil não. Certamente se houvesse liberdade de imprensa e não houvesse temor civil, os enormes problemas brasileiros apareceriam. Claro está que num certo momento, o do “milagre econômico”, houve um artificialismo na economia que o deixou relativamente “bem” – a custo de intimidações e controle e sob patrocínio de conglomerados internacionais, organismos de inteligência e países hegemônicos – logo desmanchado por sucessivas crises econômicas que geraram um caos social a ponto de os civis terem de retomar o comando do país, em abertura que esperava desengessar a economia e modernizar o capitalismo, coisa que ainda está por se fazer…
Mas onde está o dinheiro gasto na Transamazônica? E o estado em que foi deixada? E o que escorreu de dinheiro por ela, nunca mais recuperado, está em mãos de quem? E a hidrelétrica de Itaipu, o quanto custou aos cofres públicos, e o quanto foi desviado, em algumas situações por comissões generosas que não se sabe a extensão até hoje? E o processo de sucateamento das ferrovias – que liquidou a modernização via trens que traria enormes benefícios ao transporte, ao país e evitaria milhares de mortes como hoje se verifica – substituído pela pavimentação asfáltica que tanto benefício trouxe às empreiteiras, a ministros, a empresários apoiadores do golpe e ao capital internacional de empresas como Firestone, Good Year e o lobby do petróleo? É só comparar a escolha de países europeus para o transporte público e o caminho brasileiro – acelerado pelos militares, embora já estivesse no cerne de governos como o de Juscelino Kubitschek. Popular foi a expressão “ministro 10 por cento”, ministro “20 por cento”. Alguém investiga as riquezas geradas à época da ditadura? E não seria o desvio à época superior aos gastos na Copa? A estes há que investigar, mas o saudosismo de uma época em que houve mais desvios e menos investigação está apenas no horizonte dos interesses particulares.
À época, a tortura, o desaparecimento e os assassinatos imperavam , as invasões de casas se espalhavam por todo o país. Sem explicação qualquer e sem cobertura midiática. Nunca se investigou tanto a corrupção como hoje e nunca houve tanta liberdade midiática para tal em toda a história da República, ausentes naquele período da história brasileira. Nunca se debateu tanto a liberdade de imprensa como hoje e os caminhos do jornalismo. E houve gente que lutou por isso. Não foram os militares golpistas, não foram os empresários, não foram os que hoje propõem – ainda que forma fracassada ou pífia – as marchas de deus com a família pela liberdade.
Jornais de resistência em Florianópolis
Entre os muitos que lutaram, estão jornalistas em todo o país. Em Santa Catarina também. E em Florianópolis. E, na semana em que se realiza o 5º Encontro Regional Sul Rede Alcar (Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia) (*), com a presença de João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart – o Jango – , deposto pelos militares, deve-se lembrar de alguns destes jornalistas e jornais, alguns com vida mais longa, outras menos e que, em diferentes épocas do regime, correram risco para que hoje houvesse mais liberdade civil e de investigação jornalística. Houve jornais que contaram, e, em alguns casos, que tentaram contar.
Em Florianópolis, jornais como Bernunça, criado por Eloy Galloti Peixoto; Vento Sul, que durou seis meses, com participação de Sérgio Lino, e fundado pelo ex-coronel da Polícia Militar, Nery Vieira, cassado pelo regime militar; Desterro, com Cesar Valente, Pedro Port, Carlos Damião, Raimundo Caruso; Lutas da Maioria, por Renan Antunes de Oliveira; Contestado, com Celso Martins, Cau Cancellier, Valdir Alves; Afinal, com Sérgio Rubim, Ney Vidal, Elloy Galloti, Flávio Carvalho, Jurandir Camargo, Nelson Rolim de Moura; Novo Jornal, com Jurandir Camargo, Sérgio Rubim; e Matraca, de Sérgio Lino, foram alguns dos que compuseram o cenário. Alguns trabalharam em dois ou mais jornais e muitos outros trabalharam ou foram colaboradores em vários deles (**).
Tantos outros jornalistas, políticos, professores, intelectuais e diferentes militantes de distintas áreas – e aqui não caberia citar a todos – contribuíram para a resistência e a consolidação do campo da liberdade. Com diferentes perspectivas editoriais – mais informativos ou mais opinativos, engajados em diferentes ideologias – contribuíram, a seu modo, para expor as entranhas do regime militar, de seu autoritarismo, das autoridades que se locupletaram em seus cargos sob a impunidade. Os alternativos compuseram um cenário cujo legado agora a liberdade de imprensa e os organismos do estado tem maior espaço de investigação. Sem a resistência, não haveria ambiente propício aos debates de hoje, ainda que com matizes diferentes.
A possibilidade de dizer , que não havia, existe como nunca. E é uma das razões pelas quais não se deveria defender a volta de um tempo em que não havia a possibilidade legal de dizer. Parece algo que não pode sair da memória. Por isso, mais do que uma ética específica de categoria, é necessário também a defesa de uma ética vinculada a um agir coletivo balizado por conceitos como solidariedade, universalidade e cidadania, muitas vezes esquecidos diante da transitoriedade do tempo.
—-
(*) O evento ocorre nos dias 27 e 28 de março na Universidade Federal de Santa Catarina (www.alcarsul2014.sites.ufsc.br) , com o tema 50 anos do Golpe Militar de 64 – a história que a mídia faz, conta ou não conta.
(**) O jornalista Rodrigo Andrigheto fez interessante reportagem em seu Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo, “Panorama sobre a Imprensa Alternativa de Florianópolis nos anos de chumbo”, apresentado em 2004 na Universidade Federal de Santa Catarina.
Discordo formalmente das acusações injustas imputadas aos militares, eis que foram os civis que se corromperam no periodo militar, incluindo o famoso Ministro dos 10%,que atua como conselheiro economico nesse governo extremista e altamente corrupto das petrotrapalhadas. Todavia , aprecio muito a transparencia dos artigos oriundos da OBJETHOS. Saudaçoes patrioticas. Os Poderes constituidos atualmente estão corroidos alem de corrompidos.
Onde anda Ney Vidal?