Dairan Paul
Doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS

Por que pessoas acreditam que vacinas comprovadamente eficazes podem representar um perigo à saúde? Foi com essa questão em mente que o pesquisador Igor Sacramento (UFRJ/Fiocruz) entrevistou usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), em dois centros cariocas, entre setembro e novembro de 2017. Eles aguardavam sua dose de vacina para a febre amarela, já que o número de casos da doença aumentou progressivamente naquele ano. No entanto, informações oficiais sobre o problema de saúde pública concorreram com fake news que minimizavam a questão ou mesmo desacreditavam a eficácia da vacina. Sintoma de uma crise de confiança mais generalizada sobre instituições, ciência e o próprio jornalismo, casos como este nos ajudam a entender a pandemia atual de Covid-19.

Publicado no primeiro semestre deste ano, o estudo conduzido por Igor Sacramento é uma parceria entre o Laboratório de Pesquisa em Comunicação e Saúde (Fiocruz) e o Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC/UFRJ), coordenado pela professora Raquel Paiva, que também assina o artigo. A partir das mediações culturais, os autores buscam entender como os diferentes sistemas de crença dos entrevistados interferem no seu grau de confiança em relação à vacina.

Um dos resultados mais recorrentes nas respostas é a emergência de autoridades como pastores e bispos, tidos como líderes de opinião. Sacramento e Paiva destacam que o credo religioso representa uma “âncora de segurança e de proteção diante de tantos paradigmas, informações, verdades e mentiras em constante profusão”.

O entrevistado ainda destaca a intimidade como um dos aspectos que colaboram para maior confiança com as fontes de informação – se elas são parentes ou pessoas conhecidas, por exemplo. Na falta do elemento, pode-se performatizá-lo. Sacramento menciona áudios de Whatsapp que simulam revelações íntimas, de sofrimento, sobre como a vacina afeta o cotidiano de famílias.

Soma-se ao valor da intimidade uma outra lógica: a autenticidade. Tem a ver com o valor que se confere à verdade, não mais como evidência, mas como experiência e testemunho. Vale menos a comprovação, e mais o “eu vi”, “eu estive lá” – mesmo que totalmente encenados.

E como o jornalismo pode lidar com desinformações deste tipo? Sacramento afirma que não basta apenas checar o uso ineficaz de cloroquina no tratamento da Covid. Deve-se cobrar uma postura mais firme. “É muito curioso: o jornalismo quer se configurar como metassistema perito no momento em que a perícia é questionada”, avalia o pesquisador. “Ele quer validar, quase num sistema cartorial, o que é verdadeiro ou falso – mas não se posiciona. Fica nessa pretensa dimensão de ouvir os dois lados”.

Igor Sacramento é pesquisador da Fiocruz e professor no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da UFRJ. Organizou livros como Dispositivos de subjetivação: saúde, cultura e mídia (Multifoco, 2019), com Julio Cesar Sanches, e Saúde e jornalismo: interfaces contemporâneas (Editora Fiocruz, 2014), ao lado de Kátia Lerner. Pesquisa comunicação e saúde, regimes de verdade, televisão e discursos sobre doenças, entre outros temas.

A seguir, Sacramento comenta os principais resultados do estudo que assina com Raquel Paiva. Discorre ainda sobre o lugar ocupado pela instituição jornalística em meio às teorias conspiratórias contra a saúde pública, critica a cobertura ético-moral da Covid-19 e aponta três paradoxos principais do jornalismo brasileiro.

“A performatização da autenticidade confere valor a algo que está sendo visto por mim mesmo. É a minha experiência, o meu lugar de verdade por si só, o que interdita a compreensão da verdade como evidência”

Você e Raquel Paiva pesquisaram o consumo de informações sobre saúde por usuários do SUS, na época da vacinação contra a febre amarela. Quais particularidades foram possíveis de observar na circulação de fake news a partir das respostas dos entrevistados? E como elas impactam suas tomadas de decisão em relação à saúde?

A pergunta que observamos muito é “o que o jornalismo, especialmente de grandes corporações, pode fazer diante do fenômeno das fake news?”. Nós deslocamos para outra questão: “por que as pessoas acreditam no que acreditam?”. Está relacionado ao sistema de crença e às mediações socioculturais que envolvem o processo de consumo, apropriação, disseminação, circulação e produção de informação online. Nossa pergunta, portanto, se desloca dessa perspectiva do âmbito profissional do jornalismo para uma dimensão cultural em que estão inseridos os consumidores de notícias e informações.

Percebemos que as pessoas confiam naquilo em que já há uma pré-disposição a se confiar. O que eu quero dizer com isso: se confia baseado em outras figuras de autoridade. Primeiramente, você tem a dimensão dos líderes religiosos, como pastores e bispos. Isso é muito importante. Eles são como os principais líderes de opinião e de confiança, sem dúvida. Outra característica que observamos é a questão da intimidade como fator de confiança no que é informado, se a pessoa é minha amiga, prima, sobrinha, namorada. E não só a intimidade do enunciador em relação ao enunciatário – ou seja, de quem envia a mensagem –, mas a intimidade com uma ritualidade performada. Ou seja, muitos áudios, por exemplo, performatizam essa intimidade por meio de revelações de sofrimento, de dados ou informações pessoais, na mostração do cotidiano dessas pessoas e do efeito que o uso da vacina teve nas suas vidas ou de seus filhos.

O valor da intimidade se associa a outro que é fundamental na produção da verdade no contexto contemporâneo: a lógica da autenticidade. Eu diria que essa dimensão atravessa todas as outras pelo seu caráter de experiência e testemunho. A performatização da autenticidade confere valor a algo que está sendo visto por mim mesmo. É a minha experiência, o meu lugar de verdade por si só, o que interdita a compreensão da verdade como evidência. Então a gente tem um conjunto de relatos de experiência com pessoas falando sobre os “danos” das vacinas, por exemplo.

Um dado que não está no artigo é sobre as empregadas domésticas entrevistadas. Elas contam que eram incentivadas, quando não obrigadas, pelas patroas e patrões a se vacinarem naquele momento, mesmo que não quisessem. É como elas falavam. Não colocamos no texto porque é uma discussão muito complicada e sensível ao campo da saúde.

Segundo nossa Constituição, a vacinação não é direito individual, mas coletivo. Todos têm que se vacinar quando são instados a. É gravíssimo, do ponto de vista da saúde pública, declarações do atual presidente sobre o direito individual à vacinação, reforçadas por um órgão oficial, a Secom. Não se trata de um direito individual, como quer o neoliberalismo frankenstein que a gente vive no Brasil, onde parece que tudo é uma questão de escolha. É algo muito complexo e que pretendemos escrever em outro texto.

No contexto de desordem social impulsionado pela pandemia da Covid-19, somado à concorrência discursiva com fake science e teorias conspiratórias, o jornalismo ainda ocupa um lugar de autoridade relevante para as pessoas que consomem informações sobre saúde?

No Brasil, o jornalismo, pelo menos aquele realizado por grandes empresas, vive três paradoxos. O primeiro é entre a verdade e os diversos lados que compõem um acontecimento. Como é possível dar a ver o outro lado de alguém que afirma a eficiência de panaceias como cloroquina, ozonioterapia ou própolis? Acho muito complicado que o jornalismo não se posicione duramente em relação a isso e fique numa postura de checar essa informação. Isso é muito pouco para o que a gente tá vivendo.

Outras medidas devem ser tomadas, e eu não vejo no jornalismo, particularmente, esse lugar, porque ele ainda quer se reforçar em práticas tradicionais de checagem e apuração, quer se configurar como metassistema perito num momento em que a perícia está sendo questionada. É muito curioso: ele quer validar e autentificar, quase num sistema cartorial, o que é verdadeiro ou falso – mas não se posiciona em relação à verdade. Não só na saúde, mas também na política, por exemplo. Fica nessa pretensa dimensão de ouvir dois lados, ao mesmo tempo que isso é uma constituição ideológica, porque ouve os dois lados quando convém. Quando não, impõe uma única verdade.

Outro paradoxo é em relação à crise econômica e o resgate da autoridade diante de inúmeras fontes de informação e formas de comunicar presentes na cultura contemporânea, particularmente na digital. Essa crise econômica impõe que o jornalismo crie assinaturas e paywall. Se, por um lado, isso permite algum tipo de lucro para as empresas, por outro reforça uma lógica de buscar informações em outras fontes que podem ser boas ou não. É um paradoxo importante a ser considerado em uma sociedade como a nossa, com tantas desigualdades. As pessoas mal têm acesso a saneamento básico e vão se preocupar com assinatura de Folha, Globo, Estadão ou qualquer outro que o valha?

Por fim, mais um paradoxo que se entranha no jornalismo é o público e o privado em relação à informação. No contexto de desdemocratização do governo Bolsonaro, como podemos pensar a comunicação pública, que se tornou quase um relações públicas da presidência? Essa tensão público-privado também se configura no jornalismo, como na dimensão da maior parte das fontes de informação. Empresas jornalísticas privadas atendem a interesses financeiros e econômicos de grupos específicos – podemos acompanhar em coberturas que vão desde saúde até a reforma administrativa, trabalhista e da previdência. Não se questiona, em nenhum momento, a idoneidade e a credibilidade deste tipo de informação. Mas o quanto os interesses do patronato são colocados como sendo do jornalismo? Sou favorável a um jornalismo público, muito mais do que esse produzido por empresas de comunicação que têm interesses evidentes com o bloco histórico do poder atual.

Ao tratar dos motivos para a baixa adesão à vacina da febre amarela, você menciona que um dos desafios no campo da saúde é abandonar o “paradigma acusatório da ‘falta’” – como a “falta de informação”, traduzida em contrapartidas como o letramento midiático, por exemplo –, e apostar na compreensão dos porquês “para a escuta, para o corpo a corpo”. Como essa lógica pode afetar o “sistema perito” do jornalismo, em sua cobertura da Covid-19 e dos próprios movimentos anticientíficos? 

Primeiramente, vou colocar qual é o lugar do jornalismo e de instituições públicas como a Fiocruz e o Ministério da Saúde. Tem sido muito comum a postura do paradigma acusatório da falta de informação, ou ruído de comunicação. Além de autoritárias, são abordagens preguiçosas, porque não muito complexas. Elas partem do pressuposto de que há uma falta de informação nas pessoas que acreditam em fake news. Isso é completamente equivocado. Em relação à saúde, vivemos, pelo menos desde os anos 1990, no Brasil e no mundo, a formação de um conjunto de pacientes cada vez mais imersos, que buscam na internet sobre enfermidades que possuem ou acham que podem ter. Alguns autores chamam de entropia informacional essa enxurrada, esse excesso de informações.

Acho que é uma questão de educação, e não pura e simplesmente o acesso à informação. Falo de uma educação midiática – para, nas e com as mídias –, embora também seja preciso pensar em formas de transformar o próprio processo educativo. Isso talvez faça sentido em países nórdicos. No Brasil, temos desafios tão grandes, como a alfabetização, que não tem como culpar o consumo de fake news sem considerar o enorme contingente de pessoas analfabetas. E também pessoas que precisam acreditar – porque as fake news têm uma dimensão de levar tanto pavor como conforto, constituindo grupos ou comunidades em torno de teorias conspiratórias, por exemplo. Elas podem produzir um conjunto de explicações para aquilo que não é explicado, como “quando vamos sair da quarentena” ou “quando a Covid vai acabar”. Uma postura negacionista de que é só uma gripezinha também produz certo conforto para a total incerteza sobre a vacina.

“O jornalismo ficou numa dimensão ético-moral sobre o sofrimento dos casos, sem ir até a raiz dos problemas”

Aqui, no Rio de Janeiro, estamos em uma situação muito grave porque a maioria esmagadora da população não se preocupa mais com a pandemia. A preocupação maior é com a liberdade, o bem estar e o “direito à cidade”, à praia, e não o dever coletivo pela saúde. Isso certamente é estimulado pelo poder central, representado pelo presidente. Estamos perdendo de lavada a concorrência discursiva colocada pelo governo federal nesse momento. O ambiente já se estabilizou: vamos ignorar a pandemia e nos acostumar com mil mortes diárias até a vacina, se houver.

Acho que o jornalismo, no início, fez o seu papel de alerta e de mobilização ético-afetiva. Mas é preciso outras pautas com o transcorrer da pandemia, seis meses depois. Como o jornalismo brasileiro comercial não é independente, nunca houve um debate profundo sobre as consequências do modo como o governo federal está conduzindo essa crise. Houve muito mais uma comoção em relação ao número de mortes, mas não uma responsabilização pelos mortos. O jornalismo se isentou de adentrar em questões profundas, e ficou numa dimensão mais ético-moral sobre o sofrimento dos casos, sem ir até a raiz dos problemas.

Não à toa, nós e os Estados Unidos somos os países com maior número de mortes e que não conseguem sair da pandemia, seguidos do Reino Unido. São governos marcados por um neopopulismo de direita, que se valem de uma lógica de guerra permanente não contra o vírus, mas aos esquerdistas, ou o que eles queiram dizer com isso. E o jornalismo, sendo um dos responsáveis pela ascensão do presidente, se vê numa postura complicada de oposição, quando os próprios seguidores de Bolsonaro desconfiam dos jornais e entendem que eles são feitos por comunistas, o que nos faz voltar à questão da educação.

Em outro artigo, dessa vez assinado com a pesquisadora Kátia Lerner, vocês analisam as narrativas autobiográficas registradas no jornal O Dia durante a pandemia da Influenza H1N1. Na análise, identificam uma maior abertura à alteridade – inclusive do ponto de vista moral, remetendo ao cuidado de si e também do outro. A partir de casos como esse, como o jornalismo pode construir novos “pactos de referencialidade” com seus leitores em meio à cobertura do coronavírus? Quais cuidados éticos perpassam essa relação?

Se pensarmos nas estratégias do jornalismo focadas em experiências pessoais de mortes, o que Kátia e eu observamos no contexto de Influenza H1N1 ainda vale, de certa maneira. Desde o começo da pandemia de Covid, Jornal Nacional traz depoimentos de profissionais de saúde, por exemplo. O pacto de referencialidade não está mais no mundo objetivo, mas sobretudo associado à subjetividade. Essa é a questão que a gente já observava desde lá: a experiência pessoal da realidade como o lugar da verdade.

Mas agora, em meio a uma concorrência discursiva tão grande, e também diante do negacionismo, o jornalismo teve que buscar as respostas na ciência. Em relação ao coronavírus, há uma oscilação no paradigma referencial subjetivo, com outro mais calcado na evidência científica, digamos.

Precisaríamos de pesquisas para saber de que maneira as fontes ligadas à ciência ainda têm autoridade diante do público. Algumas pesquisas, como de Luísa Massarani, indicam que cientistas e instituições de pesquisa são vistos pelos consumidores como confiáveis, ainda mais quando são desassociados do governo. Mas tenho dúvidas sobre isso no contexto da pandemia. Para o jornalismo, é um desafio muito grande sucumbir a esse pacto compassivo de referência subjetiva. Acho que é um caminho sem volta, especialmente no telejornalismo, em que o repórter ressalta sua experiência em frente às câmeras. A questão é como utilizar essa retórica a favor da verdade e da saúde das populações.