Sylvia Debossan Moretzsohn
Jornalista, professora aposentada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do objETHOS e do PolObs/Universidade do Minho

Fazer um balanço de um acontecimento decisivo na vida política nos leva a indagar o que aprendemos com ele. No caso das Jornadas de Junho de 2013, que completaram dez anos este mês, o que aprendemos?

Não muito, a julgar pelos artigos e entrevistas que vem sendo veiculados, e que majoritariamente reiteram as posições assumidas na época, seja de exaltação ou condenação do movimento – nesse caso, identificado como o responsável por iniciar o processo de derrocada da nossa frágil democracia, que abriria caminho para o avanço da extrema-direita no país.

Em ambos os casos, e mesmo nas análises mais acuradas, fica ainda sem resposta a questão sobre a súbita captura de um movimento de esquerda pela direita, de modo que o protesto inicial contra o aumento das passagens de ônibus, que se inseria na causa mais ampla do direito à cidade, se transformou em gigantescas manifestações contra a corrupção, voltadas contra o governo do PT, e conduziram a uma tragédia até então inimaginável, e da qual parece claro que demoraremos muito a sair, apesar da dificílima vitória eleitoral no ano passado.

Um ponto pouco abordado nessa efeméride é o papel da comunicação, mais especificamente do jornalismo alternativo, ou do midiativismo, que tanta discussão provocou na época. Recuperar essa discussão e trazê-la para o momento atual pode ajudar no debate sobre jornalismo e militância, que se amplia agora estimulado pela onda decolonial prevalecente em certos ambientes acadêmicos.

Há farto material produzido na época, no calor da hora, em sites de crítica de mídia, ou já com algum distanciamento, em publicações científicas. Entre estas, a Liinc em Revista publicou em maio de 2014 o dossiê “Redes, ruas, mídias: revolta e reação”, que mereceria ser relido – ou finalmente lido –, pois fornece um bom panorama de análise e também permite perceber o que ficou superado, como a concepção da internet como um campo de disputa, que ignora o papel dos algoritmos, hoje muito mais sofisticados no controle do que cada pessoa verá e do alcance daquilo que vai compartilhar.

Participei desse dossiê com o artigo “As sombras de junho”, que faz uma síntese do contexto político em que as manifestações eclodiram e se concentra na discussão sobre o papel da internet nessa mobilização e na atuação dos grupos de midiativistas, em particular o da Mídia Ninja. Dele, recolho trechos que mostram a súbita reviravolta na pauta de reivindicações e a maneira de encarar o movimento e o papel do midiativismo.

As ilusões do midiativismo

Vale a pena contextualizar essa reviravolta porque, no atual balanço dos dez anos das “Jornadas”, houve quem ignorasse os fatos e jogasse para o ano seguinte, ou ainda para mais adiante – já no contexto das manifestações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff –, o surgimento dos militantes “patrióticos”, vestidos de verde e amarelo.

Não, eles estavam lá já em junho de 2013, e o professor Pablo Ortellado, referência inescapável desse movimento, expressava sua surpresa diante do que estava acontecendo: se, no começo dos protestos, a imprensa vinha cobrindo as manifestações negativamente, condenando o transtorno que causavam ao trânsito e os eventuais atos de vandalismo, após uma repressão policial violentíssima houve uma “ressignificação” do movimento, e Av. Paulista e arredores se encheram de gente, num número muito maior do que se poderia esperar para uma manifestação de esquerda.

A Folha de S.Paulo se retratou em editorial e a Veja saiu com uma capa sobre “a revolta dos jovens” e a indagação: “Depois do preço das passagens, a vez da corrupção e da criminalidade?”. Segundo Ortellado, eram aguardadas no máximo 40 mil pessoas para reagir à repressão policial, mas apareceram 100 mil. Pessoas “completamente despolitizadas”, com “as pautas mais variadas”, “várias delas com cartazes com a listinha da Veja”.

Também começaram a aparecer “pessoas estranhas, fortes, com cabelo raspado”, que atraíram manifestantes para o prédio da prefeitura de São Paulo e começaram a vandalizar, sem que a polícia interferisse.

Bruno Torturra, um dos fundadores da Mídia Ninja, não parecia nem um pouco preocupado com isso. Pelo contrário, vibrava: “Baita salada ideológica no Largo da Batata. Patriotas, comunistas, esquerda do PT, PSTU, classe média ‘Cansei’, anarcopunks. Muita gente, sabendo ou não, se odeia por aqui. Todo mundo junto. Estou adorando”.

Embora preocupado com essa “salada ideológica” – e quem tivesse um mínimo de responsabilidade e experiência política perceberia que nada de positivo poderia resultar desse caos, embora, na época, ninguém nem sonhasse com a hipótese de Bolsonaro vir a ser eleito presidente –, Ortellado defendia a “supressão da mediação jornalística”, algo em curso desde fins dos anos 1990, no processo de “comunicação horizontal” promovido pelos movimentos sociais, que se refletiriam naquele momento nas ruas: uma comunicação “direta e engajada”, que “convoca, que instiga e que debate, sem mediação” (grifo meu), e que “busca tanto informar como persuadir da justiça de uma causa”.

Assim, embora aplaudisse a Mídia Ninja, entendia que, “do ponto de vista do desenvolvimento da comunicação dos movimentos”, ela representava um retrocesso, porque recuperava a mediação profissional – embora os ninjas não tivessem, em geral, essa qualificação. E insistia na necessidade de se “criar projetos de comunicação na internet que reafirmem e aprofundem a comunicação direta e descentralizada, engajada e com licenças e padrões livres, a fim de fortalecer a autonomia de quem fala”.

A crítica a essa crença ingênua na hipótese de uma comunicação livre num meio cada vez mais concentrado na mão das grandes corporações – o que, afinal, não surpreende, porque é a tendência do capitalismo – já existia mas foi mais bem fundamentada recentemente, no livro O valor da informação, de Marcos Dantas, Denise Moura, Gabriela Raulino e Larissa Ormay, publicado ano passado pela Boitempo. Mas a crítica à “autonomia de quem fala” já havia sido feita muito antes por Adelmo Genro Filho em sua obra de referência, O segredo da pirâmide:

Esta tese de que “o povo mesmo” deve ser o gerador das mensagens, se não for tomada como uma frase de efeito (…), é de uma pobreza teórica evidente. Ela corresponde, sem dúvida que em nível diferente, à tese da autogestão sobre a economia, proposta de índole pequeno-burguesa que toma a solução da alienação mercantil de modo absolutamente idealista. Ou seja, como o controle imediato dos indivíduos sobre as “suas” condições de produção, não percebendo aquilo que o capitalismo avançado tornou óbvio: que as condições de  produção  de quaisquer trabalhadores, seja onde for, constituem parte de uma rede  universal  de  relações,  uma  totalidade  que  só  pode  ser dominada, politicamente, na relação com esse todo. (…) [isso significa] controlar o conjunto das condições de produção, incluindo aí a informação e a cultura como uma totalidade, isto é, politicamente. O que é muito distinto de “devolver a palavra ao povo”, uma ideia ingênua que, entre outras coisas, não leva em conta que o “povo” jamais teve acesso ao tipo de “palavra” que agora se pretende devolver-lhe: os jornais, o rádio, a televisão e os demais meios eletrônicos de comunicação.

A exaltação da “comunicação direta” caminhava de par com a hostilização à mídia institucionalizada, não apenas em palavras de ordem mas no enfrentamento físico que impedia o trabalho de jornalistas, vistos como instrumentos das empresas que inevitavelmente distorceriam as informações.

Eram ataques diferentes dos que já haviam ocorrido em outras ocasiões, por exemplo no Rio de Janeiro durante a campanha para a primeira eleição direta para governador, quando os veículos das Organizações Globo eram rejeitados por sua evidente atitude contrária ao então candidato Leonel Brizola, afinal vencedor, e seu envolvimento na tentativa de fraude no caso Proconsult: em 2013 a rejeição era às empresas jornalísticas de modo geral.

Esse também é um aspecto relevante a se considerar, tendo em vista a captura dessa hostilidade pela extrema-direita, que também passou a exaltar a “comunicação direta” através de seus canais na internet.

Compromisso com “a busca humana da verdade”

O midiativismo procurava insurgir-se contra a falácia da imparcialidade jornalística assumindo claramente o que a mídia hegemônica tentava ocultar: o fato de que todos temos um lado e precisamos deixar isso claro na hora de informar. A prática cotidiana demonstrava, porém, que não se tratava apenas de explicitar o lugar de onde se falava, mas falava-se apenas o que interessava. Outro traço característico desse discurso contestador era a defesa das “múltiplas parcialidades”, como forma de enfrentar a notória parcialidade das grandes empresas jornalísticas.

Ainda que já não seja formulada dessa maneira, essa convicção persiste entre quem se propõe a assumir o papel político do jornalismo. Adelmo Genro Filho já havia alertado para esse problema da militância, que reduzia o jornalismo a um embate ao nível da propaganda e ignorava sua potencialidade na produção de uma forma específica de conhecimento do mundo, capaz de ser orientada no sentido da autoconsciência e da emancipação humana.

Isto se aplica precisamente ao discurso que aponta os muitos preconceitos da grande imprensa contra os marginalizados mas considera que, por isso, é possível abrir mão dos princípios fundamentais do jornalismo.

Num debate sobre a identidade profissional do jornalista, durante seminário promovido pela Associação Brasileira de Imprensa em março deste ano, o professor Antônio Serra sublinhou que o jornalismo não é um meio de expor convicções para arrebanhar adesões: é a busca humana da verdade. Ressaltou esse aspecto – a busca humana da verdade – para recordar o que diziam os gregos antigos: que a Verdade era uma coisa dos deuses, e o que restou aos seres humanos é uma procura, uma busca, que às vezes chega próxima a alguma coisa que se possa reconhecer como verdade, e que por isso é extremamente falível.

Mas essa busca exige um comportamento crítico e autocrítico das nossas convicções. Por isso o jornalismo é tão difícil, mas tão necessário. Por isso, também, o trabalho teórico exige tanto rigor.