Ricardo Sékula
Mestrando no POSJOR , pesquisa memes e paródias no jornalismo

brdl_03A rápida reação do público à matéria de Veja sobre Marcela Temer não é um ataque à esposa do vice-presidente Michel Temer (PMDB). Trata-se de uma resposta ao conservadorismo velado do jornalismo brasileiro, que insiste na construção de estereótipos a partir da criação de padrões visuais e modelos de comportamento a serem adotados pelas mulheres. A apropriação que o público fez da manchete “Bela, recatada e ‘do lar’” virou meme e ganhou as redes, desdobrando-se em imagens que contestam a posição da revista e subvertem o sentido da mensagem original. Em poucas horas, o #belarecatadaedolar tornou-se uma forma dos internautas dizerem que os tempos são outros, e que não aceitarão de bom grado caracterizações reducionistas feitas pela imprensa.

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A intenção de “enaltecer Marcela Temer como a mulher que todas deveriam ser, à sombra, nunca à frente”, conforme opina a pesquisadora Djamila Ribeiro em sua coluna na revista Carta Capital, virou piada nacional. Nos memes criados pelo público, a expressão passou a ser utilizada com uma grande variedade de imagens apresentando atitudes nada recatadas e/ou estéticas que não se encaixam nos padrões. Mulheres bebendo, fumando, com decotes generosos, em poses e atitudes sensuais ou “ligando o foda-se”, por assim dizer, criaram um mosaico visual que lançou mão da paródia para ridiculizar o subtexto da matéria de Veja. Logo o acervo imagético ultrapassou o universo feminino e a brincadeira estendeu-se também para imagens de homens, bichos, objetos, etc. Qualquer coisa que pudesse contrapor-se à legenda “bela, recatada e do lar”.Sophia_Starosta

A participação dos homens na brincadeira (me incluo nessa) também gerou discussões no Facebook sobre até que ponto não estaríamos ridicularizando ou nos apropriando de uma luta que não é nossa. Postura que ainda demarca o quão delicadas são as questões de gênero no Brasil, especialmente quando estereótipos de masculinidade e feminilidade são postos à prova. Uma condição que fica ainda mais evidente na cena política. Exemplos não faltam nesse sentido. Quem não lembra dos ataques do deputado federal Jair Bolsonaro (PP) à deputada Maria do Rosário (PT), em 2003 e 2014? Ou da polêmica gerada em torno do vestido usado por Dilma Rousseff (PT) na posse de seu segundo mandato, em janeiro de 2015, assunto nas redes sociais e nos principais jornais do país?

Há poucas semanas, a concorrente de Veja, a revista IstoÉ, também foi acusada de machismo e misoginia ao publicar a reportagem “As explosões nervosas da presidente”, tratando de supostos casos de descontrole emocional da presidente Dilma Roussef (PT). O tom pejorativo do texto levou jornalistas, coletivos de mídia, grupos feministas, figuras públicas e internautas a se posicionarem contrários à reportagem, criando a #IstoÉMachismo e acusando a revista de reforçar estereótipos machistas com a intenção de retratar as mulheres como inadequadas ao exercício do poder político.

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O que está por trás dessas (re)ações do público tem relação direta com os processos de democratização tecnológica, seja pelo caráter cada vez mais intuitivo das técnicas ou pelas possibilidades de participação dos atores sociais na esfera pública midiática. Enquanto linguagem, os memes condensam aspectos que caracterizam os tipos de trocas que permeiam o ciberespaço, como a apropriação, o remix, o cut up de informações e a colagem, dando vazão e visibilidade a perspectivas diversas. Em seu conjunto e na medida em que se propagam e se modificam, possuem o potencial para colocar em diálogo diferentes discursos.

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Mais do que expressões de uma cultura supostamente inútil – o famoso “besteirol” – os memes configuram-se, conforme destaca Shifman (2014, p. 41) como “um grupo de ítens digitais que compartilham características comuns de conteúdo, forma e/ou posição, os quais são criados com consciência umas das outras, e circulam, imitam e/ou transformam-se na internet através de muitos usuários”. O uso do humor torna-se assim uma forma para contrapor posições e discursos, resgatando o sentido da paródia como um recurso para gerar oposição ao que é oficial ou socialmente aceito. (BAKHTIN, 1993) Basta lembrarmos de seus usos pelo próprio jornalismo, através da charge, da caricatura, ou a exemplo da postura adotada pelos pasquins durante o período da ditadura militar, para aludimos ao poder que humor tem nos processos de ressignificação dos discursos.

Jeanne_CallegariAo entendermos os memes como resultado de um sistema contextual e interpessoal que leva em conta as relações estabelecidas, conforme propõem Knobel e Lankshean (2007), é possível perceber neles a expressão daquilo que se assume como verdadeiro pelos grupos que os produzem e compartilham. A posição expressa por eles associa-se assim a um sistema ideológico, o qual engloba um conjunto de valores, crenças, posicionamentos, etc., demarcando que uma certa visão de mundo está sendo contestada.

Dessa forma, o meme #belarecatadaedolar, para além de seu caráter de diversão, torna-se também a expressão de uma sociedade que já não aceita ser enquadrada em padrões e estereótipos que foram estabelecidos ao longo dos tempos, inclusive pelas próprias narrativas jornalísticas. Ao reduzir Marcela Temer a características como ser discreta, falar pouco e usar saias na altura do joelho, a revista Veja reafirma um discurso desgastado e preconceituoso de como a mulher deveria se portar socialmente. E aproveitando o gancho, tenta construir a partir da esposa a imagem (que não anda lá muito boa) de um Michel Temer atencioso, responsável e romântico.

Os memes que se seguiram, ao re-apresentarem essa condição a partir de um conjunto de imagens contrastantes, revela porém, que o público (pelo menos em parte) não está disposto a reproduzir ideias que ferem lutas e conquistas históricas pela igualdade de gêneros. Mais do que imagens banais, tornam-se uma poderosa força contradiscursiva, estabelecendo outras possibilidades de mediação midiáticas. Isso sinaliza que as mulheres mudaram, que a sociedade mudou e que também as formas de expressão mudaram. Só mesmo o discurso de revistas como Veja e IstoÉ é que parecem ter ficado num passado anterior ao das próprias revoluções feministas.

Referências

BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rebelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.

SHIFMAN, Limor. Memes in digital culture. Cambridge, Massachutts: The Mit Press Massachusetts Institutes of Technology, 2014.

KNOBEL, Michele; LANKSHEAN, Colin. Online Memes, Affinities, and Cultural Production, in: KNOBEL, Michele; LANKSHEAN, Colin (orgs.), A New Literacies Sampler, New York: Peter Lang, 2007, p. 199-227.