Amanda Souza de Miranda
Professora do Ielusc, doutoranda no POSJOR e pesquisadora do objETHOS
O estupro de uma jovem de 16 anos em uma comunidade carioca provocou comoção no país. Mas ao mesmo tempo em que a sociedade se empenhou em responder ao caso bradando contra a violência, um outro movimento resgatou um hábito demasiadamente humano do “cidadão de bem”: o desejo de julgar, de indicar condutas, de normatizar corpos e moralizar os debates.
As reações opostas estão por toda a rede. Movimentos sociais e ativistas dos direitos das mulheres pedem uma resposta ágil das instituições quanto ao caso. Ou melhor, quanto aos casos. Ao mesmo tempo, as instituições parecem despreparadas para lidar com situações de grande comoção pública. Antecipam fatos e julgamentos com microfone aberto, em tempo real. Do outro lado, um vasto número de cidadãos tenta digerir informações que circulam por todos os canais, a maior parte delas sem credibilidade. Ao mesmo tempo, apressam-se em transformar a vítima em ré, subvertendo um debate público surgido na esteira da singularidade do fato: a discussão sobre machismo, sobre misoginia e sobre a violência de gênero.
Nos momentos de inflexão, o jornalismo tende a tornar-se fundamental. Informações desencontradas, boatos e pegadinhas compõem o repertório que chega diariamente a qualquer usuário da rede. Os jornais tendem a se comportar de modo mais responsável, em defesa da sua credibilidade. Organizam os dados, checam as informações, confrontam as versões e as transformam em notícias.
Mas isso é tudo?
Não deveria ser. Não estamos diante de um fato qualquer. Uma mulher é violentada a cada 11 minutos no Brasil. 70% delas são crianças e adolescentes. Isso em um cenário em que apenas 35% dos casos de estupro são notificados. É uma sequência de manchetes aterrorizantes, que trazem no seu bojo uma importante discussão sobre direitos humanos e sobre opressão. Mais do que isso, elas traduzem em dados uma realidade assimilada de forma determinista, que assombra os movimentos feministas e preocupa mulheres mais ou menos engajadas nos debates sobre gênero.
O jornalismo precisa de mais humanidade
Não basta aos jornais acompanhar o grande acontecimento noticioso que veio a público na última semana. Entrevistas com a vítima, com os suspeitos, o dia a dia do inquérito e o acompanhamento do caso compõem a singularidade do fato. Interessam, na medida em que são factuais, em que nos permite saber o que está acontecendo, separando informações reais de boatos e mentiras. Mas se esgotam e somem do debate público com a mesma rapidez com que entraram.
Para discutir machismo, misoginia e violência de gênero, é preciso encorajar os jornais a adotarem uma postura humanista diante da realidade. Não se trata de militar ou de agir de modo tendencioso, trata-se, sim, de usar as ferramentas do jornalismo para escancarar e elucidar dados, trazendo intelectuais e militantes para ocuparem o espaço midiático, embrenhando-se numa discussão que diz respeito a todos e a todas nós. A violência de gênero, a cultura do machismo e a misoginia não são fantasias. São reais. E são cruéis.
No dia 26 de maio, o Jornal Extra tomou uma posição sem que se precisasse concluir o inquérito policial, dispensando as “provas” que os tribunais não autorizados exigem quanto as evidências do estupro. Com a imagem acima, a publicação se posicionou e se apressou em transmitir uma mensagem sintonizada com uma grande causa. Bons jornais não estereotipam bandidos e mocinhos, tampouco transformam o mundo numa realidade maniqueísta. Bons jornais estão dispostos a ocupar arenas públicas, extrapolando o conceito de notícia para além do que aparece no lead, produzindo conhecimento capaz de gerar perturbações.
Em torno do extenso debate sobre a função social do jornalismo, noticiar fatos que violem os direitos humanos não é mais um exercício ético. É uma obrigação. Ir além é transformar essas notícias em debates e se engajar a partir de um posicionamento editorial sintonizado com causas urgentes e concretas. O Minimanual de Jornalismo Humanizado lançado nesta segunda-feira pela OnG Think Olga é um exemplo saudável de como levar essa discussão para a prática.
Em um artigo publicado n’O Globo, a premiada jornalista Dorrit Harazim afirmou que o caso trágico da menina estuprada em uma comunidade carioca precisa levar o país a se olhar no espelho para constatar “sua cumplicidade por omissão”. Na última frase do texto ela questiona se o Brasil vai encarar o debate. A resposta está em aberto, mas para que seja positiva é urgente que o jornalismo se adiante, se sensibilize, se humanize. É preciso, sobretudo, que enfrente.
Feliz por ver o debate sobre a importância de refletir sobre gênero, sobre a cultura machista, numa perspectiva em que o Jornalismo esteja centralizado. O jornalismo também é machista, porque é parte desta cultura, atuando de forma a retroalimentá-la. Os jornalistas não acessam formalmente os conhecimentos capazes de desconstruir e desnaturalizar os padrões culturais. Desta forma, reproduzem os valores dominantes que fazem parte de suas bagagens culturais, crivadas de conhecimentos do senso comum, e que são construídas desde as socializações primárias, pelo assujeitamento a que todos estamos submetidos. E seguem sem condições de reflexão crítica pela impossibilidade de acesso a novas formas de conhecer que deveriam ser facultadas sobretudo pela Universidade. Para que o próprio Jornalismo possa ser transformado, para que os jornalistas acessem (e desconstruam) o conhecimento acerca da cultura em que estão inseridos e que acabam reproduzindo em suas práticas, ainda que inconscientemente, entendo que gênero deve entrar na base curricular de formação desses profissionais, articulado com outros marcadores como classe, raça, sexualidade, geração, etc. Incluir a formação sobre gênero para jornalistas, como parte dos conhecimentos necessários para a leitura complexa da realidade, é um caminho efetivo para a transformação cultural da sociedade. É uma bandeira que convido a autora e a todos e todas que reconhecem essa urgência a se engajarem, sob o risco de continuarmos falando muito e fazendo efetivamente muito pouco.
Concordo plenamente, Márcia. Conheço teu trabalho e acho fundamental que pesquisadoras que estão profundamente alinhadas a essa temática se posicionem dessa forma. Vejo pequenas e esparsas iniciativas nas universidades na tentativa de acolher essa discussão como central. Na maioria, são iniciativas das próprias mulheres que percebem a desigualdade mesmo num ambiente marcado pelo senso de liberdade, de busca por um conhecimento plural. Penso que seria uma pesquisa interessante identificar de que forma as questões de gênero se apresentam em nossos currículos. Um abraço e obrigada pelo comentário.