Carlos Marciano
Mestre em Jornalismo e pesquisador do objETHOS

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Fonte: imagem divulgada no Facebook (http://migre.me/ur1La)

Ok, a analogia da imagem acima pode ser forte, mas o relevante debate sobre o projeto Escola Sem Partido parece estar ofuscado, pelo menos na mídia televisiva. É claro que o noticiário das últimas semanas foi conturbado em meio aos atentados na Europa, a passagem da tocha olímpica pelo Brasil e a caça frenética pelos Pokemóns em várias partes do mundo. Porém, tirar o foco desse projeto controverso pode ser uma manobra política estratégica, diante do cenário governamental instável e apurações questionáveis, como a suposta fraude da Folha, sabiamente retratada aqui pela pesquisadora Sylvia Moretzsohn.

O Projeto de Lei (PLS) n. 193/2016, de autoria do senador Magno Malta (PR-ES) afirma que a educação nacional deve ter como princípio “a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. Ou seja, em caso de aprovação, o professor sofrerá limitações para expressar suas ideologias em sala de aula, podendo, inclusive, sofrer punições em caso de denúncia.

Enquanto o projeto tramita no Congresso Nacional, uma consulta pública está disponível no site do Senado, a fim de verificar a opinião das pessoas sobre o tema. Até a noite de ontem (24) a maioria dos votos era contrária.

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Fonte: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666

Os dois lados da moeda

É pela internet e redes sociais que as informações e debates sobre o assunto têm se disseminado com maior frequência. No Facebook, duas páginas situam-se como centralizadoras da discussão, apresentando links, vídeos, imagens e entrevistas para defenderem seus posicionamentos: Escola Sem Partido expõe opiniões favoráveis ao programa, enquanto Professores contra o Escola Sem Partido atua na linha oposta.

Percebe-se no argumento principal do lado favorável um posicionamento político claro: o Escola Sem Partido irá evitar que o esquerdismo, intensificado pelo governo petista, influencie as novas gerações. Para defender esse argumento circulam nos perfis de pessoas defensoras do programa uma pesquisa sugerindo que a doutrinação de esquerda prevalece nas escolas.

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Fonte: http://escolasempartido.org/images/quadroveja.jpg

Tais dados são uma das bases do Escola Sem Partido, porém existem inconsistências como o fato da pesquisa ter sido encomendada ao Instituto CNT/Sensus pela revista Veja em 2008, sem detalhamento da metodologia ou margem de erro.

De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de estudantes nas escolas públicas do Brasil é de 45 milhões. Considerar como tendência essa pesquisa desatualizada e feita com apenas 3 mil estudantes, menos de 0,01% do total de alunos, não parece ser algo estatisticamente concreto e digno de credibilidade. Será que diante do quadro político atual, os resultados seriam os mesmos se a pesquisa fosse aferida agora?

Do lado contrário, o argumento predominante é de que o projeto fere os princípios educacionais previstos no Artigo 206 da Constituição Federal, mais especificamente o segundo e terceiro incisos: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino.

Nesse sentido, educadores e entidades relacionadas tentam mobilizar debates para barrar o projeto, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (MPF), que encaminhou ao Congresso uma nota técnica em que considera “inconstitucional” a proposta de incluir o programa Escola Sem Partido na Lei de Diretrizes e Bases da Educação.

Fonte: Página do Ministério Público Federal no Facebook (http://migre.me/ur1Hj)
Fonte: Página do Ministério Público Federal no Facebook (http://migre.me/ur1Hj)

Embora o programa Escola Sem Partido ainda esteja em tramitação no Senado, as ideias ali defendidas já serviram como base para a instauração de leis semelhantes, como aconteceu no estado de Alagoas, tendo a Advocacia Geral da União recomendado posteriormente que essa lei fosse suspensa.

O futuro (in)certo

Ainda não está aprovado, mas já seria possível prever o reflexo desse projeto na sociedade? Sim, um cenário onde o preconceito tende a prevalecer em várias instâncias. Aliás, é importante levantar esse debate justamente para apresentar o retrocesso educacional, social e democrático que tal medida poderá acarretar.

Em se tratando de relação interpessoal, a ideia de neutralidade é utópica. O contexto social e cultural em que estamos inseridos desde a infância tem grande influência na formação de nossos pensamentos, porém nossas reflexões de mundo não estão restritas a eles. Pelo contrário, para um crescimento moral e ético é necessário que sejamos apresentados a contrapontos, que nossas inquietações sejam debatidas e não oprimidas por um pensamento predominante ou a falta de diálogo.

O projeto de Lei proposto pelo senador Magno Malta tem resquício de uma ditadura hipócrita e velada, onde o princípio da neutralidade é disseminado como forma de impedir em sala de aula uma ideologia hipotética, mas por debaixo dos panos prioriza uma ideologia opressora, retrógrada e conservadora.

Não é só a formação política dos estudantes que estará em xeque, os pequenos avanços nas reflexões sobre ideologia de gêneros e laicismo, conseguidos a duras penas, também serão afetados.

O Parágrafo único do Artigo 2º diz que “O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero”.

Ou seja, o professor não poderá levantar debates sobre o casamento gay, igualdade de gênero, adoção de crianças por casais homoafetivos, entre outros. Alunos que se sentem oprimidos por sua opção sexual terão mais dificuldade em conhecer seus direitos; a sociedade do machismo sorrateiramente irá preponderar nas salas de aula.

Ainda no mesmo Artigo 2º, o parágrafo VII defende o “direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. ”

Imagine uma sala de aula com muçulmanos, cristãos, budistas, indianos. Considerando que o ensino religioso deva ser disseminado nessa determinada escola, teria o professor condições de apresentar igualmente os ensinamentos do Alcorão, da Bíblia, de Buda ou das divindades hinduístas? Ele deverá segregar os estudantes para que só apareçam nas aulas em que suas respectivas religiões forem debatidas? O espiritismo, ateísmo, cultos africanos e tantas outras religiões seriam descartados?

Tecnicamente para cumprir esse requisito, ou se fala de tudo ou não se fala de nada; mas as chances dessa lei privilegiar o ensino da religião dominante (leia-se cristianismo) são bem maiores. O Estado Laico manda lembranças…

Por mais que os professores tenham suas opiniões formadas, não existe provas de que eles, isoladamente, influenciam os posicionamentos e ações dos seus alunos. Os jovens estão cada vez mais questionadores e muitas vezes seus posicionamentos fazem os docentes reverem os próprios conceitos. Cercear esse debate é estimular a manutenção de estigmas sociais.

“Não existe escola sem ideologia”, ressaltou em entrevista o professor de História Dr. Leandro Karnal, defensor de que o Escola Sem Partido é uma “asneira”, pois os fatos históricos sempre são embasados em opções políticas. Obrigar o professor a estimular reflexões sem posicionamentos é incoerente, um retrocesso, é enviesar a educação para um conservadorismo opressor. E para aqueles que acreditam tratar apenas de um ajuste pedagógico fica abaixo a reflexão de Maurício Ricardo: escola sem partido não vai ser tão fácil…

[Leia ainda o texto “Escola sem partido, corpo sem alma“, publicado recentemente no objETHOS]