Por Tânia Giusti
Mestra em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS

A ciência embasa todas as decisões e pautas alusivas à pandemia da Covid-19. É por conta dessa onipresença que a Agência Bori foi criada no começo desse ano, defendendo que o jornalismo científico não deve estar restrito a uma única editoria. Ana Paula Morales e Sabine Righetti são as jornalistas e cientistas por trás do empreendimento, atualmente em fase beta e mantido pelo Instituto Serrapilheira. O objetivo da Bori é aumentar a presença da ciência e dos estudos brasileiros em qualquer área da mídia nacional. Por meio de conteúdo com alto impacto e de apoio a profissionais, a equipe tem realizado um trabalho de destaque.

EurekAlert! É a plataforma americana que inspirou a Bori, ao disponibilizar artigos em vias de publicações e materiais de apoio a jornalistas. Já o nome é uma homenagem à pesquisadora Carolina Bori, primeira mulher a presidir a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), na década de 80.

A agência funciona da seguinte forma: primeiro, estudos brasileiros que acabaram de ser publicados ou que estão em vias de publicação são levantados em bases de periódicos acadêmicos. Em seguida, aqueles de interesse social são escolhidos para divulgação na Bori, que produz um release e prepara os cientistas interessados na divulgação para atender à imprensa.

Com a pandemia, a agência concentrou esforços no apoio a jornalistas, e lançou, assim que o primeiro caso foi confirmado, um banco de apoio à cobertura. Médicos, economistas, cientistas e diversas outras fontes estão reunidas na plataforma e prontas para atender à mídia. Para ter acesso, os profissionais de mídia devem se cadastrar.

Além do material gratuito disponibilizado para jornalistas cadastrados, Bori também realiza seminários em vídeo para abordar pesquisas. No início de abril, um dos webinars discutiu a produção, leitura e interpretação de dados sobre a Covid-19.

A seguir, você confere uma entrevista realizada com as jornalistas Ana Paula Morales e Sabine Righetti. Em pauta, a importância da divulgação científica, como aproximar a linguagem de jornalistas e cientistas, e as especificidades na cobertura do jornalismo científico.

Vocês lançaram a Agência Bori às vésperas do início da epidemia no Brasil. Sabemos que, com as instituições científicas do país fechadas no período de carnaval, vocês começaram a receber mensagens de outros jornalistas em busca de entrevistados para repercutir o primeiro caso confirmado de Covid-19 no Brasil. Além de fazer a ponte, vocês criaram um excelente caderno de fontes, com relatórios e outras informações. Como está o atual trabalho da agência neste momento, mais focado na Covid-19 ou mesclado com outras divulgações cientificas?

Sabine: Tínhamos lançado a Bori há duas semanas. No dia que teve a primeira confirmação do coronavírus no Brasil, alguns jornalistas que já estavam cadastrados na plataforma entraram em contato com a gente, na Quarta-feira de Cinzas, porque as instituições estavam fechadas. E aí Ana e eu, no mesmo dia, fizemos uma chamada pelas nossas redes, para cientistas que topassem falar. Montamos esse banco de fontes e ele cresceu muito. Hoje tem todos os artigos, pesquisas e autores brasileiros sobre o Covid – são 35, mais ou menos. Fontes são mais de 200. Esse material acabou virando o centro do nosso trabalho, no momento.

Nessas duas semanas de Bori, antes da pandemia, tivemos um impacto super grande por conta de um estudo que saiu na Folha de S. Paulo e foi o mais lido daquele dia. O que a gente vê, desde então, é que agora trabalhamos muito em função da demanda do jornalismo. A gente não pode se desconectar do que o jornalismo precisa. Percebemos que a imprensa inteira, não só o jornalismo de ciência, está falando sobre a Covid. Fizemos experimentos, divulgamos estudo de astronomia, biologia, com foco em plantas, mas a repercussão foi muito pequena. Nós até avisamos aos cientistas que podemos testar outros assuntos, mas é o coronavírus que será coberto.

Ana Paula: Desde a concepção do projeto, queríamos mostrar a ciência na mídia, e não apenas em uma editoria. Ciência não é só aquela hard que todo mundo pensa: biologia, astronomia etc. Queremos que a produção do conhecimento brasileiro esteja em todos os cadernos. Nosso banco de fontes tem desde virologistas e infectologistas até farmacêutico para falar de álcool em gel e economistas para abordar o impacto da pandemia. É preciso unir estudos de diversas áreas, e não só as ciências hard que estão pautando a imprensa.

“Especificidades do jornalismo científico estão transbordando para outras editorias”

A equipe da Bori é composta por profissionais de Tecnologia da Informação (TI), Estatística e Jornalismo. Já a ideia da fundação da Agência veio de uma jornalista e uma biomédica e divulgadora científica, ambas com experiência em pesquisas científicas. A união dessas áreas foi importante para a realização do projeto?

Sabine: Nós duas somos jornalistas e cientistas – a Ana não tem formação em Jornalismo, mas tem pós [em Jornalismo Científico, pela Unicamp] e trabalhou com jornalistas também. A diferença é que ela sempre fez um jornalismo mais especializado, enquanto o meu é factual, porque trabalhei na Folha.

Ana Paula: Esses aspectos de formação contam muito, já que a formação primeira da Sabine é jornalista e a minha primeira é como cientista [Morales possui graduação em Ciências Biológicas – Modalidade Médica]. As duas acabaram jornalistas e cientistas, mas é também da nossa vivência.

Estive muito tempo na área da comunicação científica, mas no lado institucional e acadêmico, tentando fazer essa ponte da universidade para fora com projetos de divulgação científica. Já a Sabine tem essa vivência no jornalismo diário, da rapidez de acessar a fonte.

Tanto a formação como a experiência profissional ajudam a observar dificuldades e lacunas para entender os mecanismos de funcionamento da academia. Como é o dia a dia de pesquisadores, como eles pensam e reagem. Do mesmo modo, no lado da mídia: qual é a necessidade, a dinâmica das redações.

Quais são as principais dificuldades na tradução da linguagem científica e no acesso aos cientistas feito por jornalistas?

Sabine: Isso se mantém e é difícil. Com nosso trabalho, chegamos a uma estatística, a partir da abordagem que fizemos que funciona da seguinte maneira: Entramos em contato com a fonte e dissemos que o estudo é interessante e será publicado na sexta-feira da próxima semana, por exemplo. Nós queremos fazer a divulgação, temos uma equipe altamente capacitada para escrever sobre essa pesquisa e colocaremos de graça na plataforma, disponibilizando o acesso para mais de 800 jornalistas.

Um em cada cinco dos cientistas que nós procuramos falam que não estão a fim. Não querem falar com o argumento de que o estudo já foi publicado em uma revista científica, e eles acham que não precisa chegar à sociedade. Ainda é muito difícil e estamos trabalhando para melhorar isso.

Ana Paula: Apesar das dificuldades que ainda existem, há interesse de ambas as partes em muitos casos. A Bori foi lançada antes da pandemia, num período de crise na ciência brasileira, de cortes sucessivos no financiamento e vários outros tipos de ataque, como movimentos anticientíficos – não só no Brasil, mas no mundo. Há todo um contexto que valoriza a divulgação científica pelos cientistas. Mas é algo que sempre foi abstrato. Embora eles considerem importante, é como se o trabalho do cientista fosse somente até a publicação do artigo – “divulgação científica é legal, mas não é prioridade. Não sou eu que vou fazer”.

Nesse contexto de crise, a divulgação acabou se tornando, de certa forma, prioridade, porque cientistas passaram a enxergar a real necessidade de se comunicar com a sociedade para mostrar o valor da ciência.

Há precarização de trabalho nas agências de divulgação cientifica das universidades – um dos fatores que resulta na cobertura baixa da ciência brasileira. Há também a falta de diálogo entre pesquisadores e jornalistas, como vocês já expuseram. Como esses canais de divulgação para a imprensa podem ser fortalecidos?

Sabine: Em alguns periódicos internacionais, quando o trabalho é submetido e aprovado, você recebe um termo no qual se compromete, enquanto pesquisador, a falar com a imprensa e divulgar o estudo. Se você não se comprometer, o trabalho não é publicado na revista científica. Isso ainda não existe no Brasil.

Se os periódicos se posicionassem antecipadamente, dizendo que o cientista se compromete a divulgar aquele estudo para a sociedade, ele não poderia dizer à imprensa que “a pesquisa já foi publicada e não precisa chegar à sociedade”. Falar com a imprensa deveria ser institucionalizado. Deveria fazer parte das revistas científicas e até da avaliação dos cientistas. Ainda estamos longe disso.

Ana Paula: Nos Estados Unidos, a avaliação para um pesquisador receber verba para pesquisa não passa só pela publicação, mas também pela exposição e disseminação para a sociedade. Um cientista americano já está acostumado a falar com a imprensa. É muito mais entrevistar um pesquisador dos Estados Unidos do que daqui. Você manda um e-mail e eles respondem rapidamente, já faz parte da cultura deles. Isso que a Sabine colocou de institucionalizar a antecipação por parte dos periódicos ajudaria a mudar essa cultura, para tornar os cientistas mais acessíveis.

Sabine: É super complicado. Antes da quarentena, estivemos na Universidade Federal de Pelotas falando da Bori. A equipe da Pró-Reitoria questionou o que poderiam fazer para melhorar a divulgação científica de lá. Respondemos que o primeiro passo é ter uma decisão institucional: a prioridade é ter uma agência científica.

Em segundo lugar, é preciso seguir protocolos de divulgação, e não a agenda do reitor. O tempo todo, jornalistas são desviados para fazer agendas institucionais, atender a pequenos eventos que não têm repercussão na sociedade. Equipes são pequenas, muitas vezes com estagiários e alunos em formação, desviados para essas funções.

Várias universidades relatam isso: o professor mandou uma tese de um aluno, pede divulgação, a equipe de jornalistas percebe que ela é complexa e precisa ser lida para entender do que se trata. Até aí, já se perdeu muito tempo e se responde que não será viável, o que gera uma situação de briga e desconforto. Então precisa ter protocolo do que é divulgável, de como é esse processo. Muitas vezes, jornalistas dessas agências estão sobrecarregados e ansiosos. Você precisa de protocolos explicando como as agências funcionam.

No início da Bori, fizemos estudos e constatamos que assessorias de imprensa não sabem o que pesquisadores de universidades estão fazendo. Elas não conseguem acompanhar em tempo real. Olhamos bases de periódicos e descobrimos que as próprias comunicações das universidades não acompanham a produção científica de seus pesquisadores. Jornalistas também recebem muita demanda e não conseguem projetar para fora das universidades o que está acontecendo. Esse processo de realizar uma curadoria e acompanhar pesquisas para descobrir se elas são relevantes ou interessantes acaba não sendo prioridade.

Não há uma linha institucional clara, as pessoas não têm tempo. Isso, claro, quando tem agência – há várias universidades sequer com equipes de comunicação no Brasil. Então sempre falamos: precisa ter equipe, precisa ter protocolo, e agora com a pandemia isso fica evidente.

“Falar com a imprensa deveria ser institucionalizado. Deveria fazer parte das revistas científicas e até da avaliação dos cientistas”

Quais são os desafios dos jornalistas brasileiros, num cenário político onde o Presidente da República adere a um discurso negacionista, contesta evidências cientificas e incentiva fake news? Quais são os riscos para a saúde pública a partir dessas atitudes?

Sabine: A cada declaração do governo, jornalistas vêm pra Bori pedir ajuda para encontrar pessoas para comentar. As matérias acabam sendo muitas vezes para “desmentir” algo que o governo está falando, ou desinformando cientificamente, do que para trazer como a ciência está caminhando. É um desafio a mais.

Por exemplo, Marcos Pontes [atual Ministro de Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações] deu, em uma coletiva, que o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) tinha atestado uma droga com 94% de sinal de positivo contra a Covid. Quando aconteceu, meu pai, que é leigo, me ligou falando que acharam a cura do coronavírus. Fui atrás, nas bases, nos estudos, e descobri que era uma pesquisa com célula.E, essencialmente, só 7% de pesquisas com células dão resultado em humanos. Poucos jornalistas sabem disso. Chamei um colega e escrevemos esse artigo para a Folha.

É meio desesperador você ver o governo falando. Muitos jornalistas não estão preparados para receber aquela informação e entender. Lembrando que nem todo jornalista que está na cobertura da Covid-19 é de ciência – a imensa maioria não é –, e a gente tem uma educação de ciência de base no Brasil muito ruim. Quem que sabe que a pesquisa em célula não significa resultado em humano? Minoria. É uma cobertura muito difícil.

Ana Paula: São especificidades do jornalismo cientifico, da divulgação de ciência, que estão transbordando para outras editorias, de novo. Em muitas áreas, o jornalismo é “fulano deu tal declaração”. Esse é o lead, não interessa se aquilo é verdade ou não. O Ministro declarou e isso é a notícia. Só que quem cobre ciência sabe que existe um método, um teste, que depois sai da pesquisa básica e vai para o teste clínico, quando é medicamento. Tem muitas etapas. É mais complexo, e o desdobramento disso é que dá mais trabalho. Mas evidenciar o método científico também precisa ser feito. Então acaba indo para outras áreas, o que é super complexo, e por isso há poucos jornalistas especializados em ciência no Brasil.

Sabine: Nesse caso a maioria dos jornalistas que escreveu sobre eram de política. O Ministro falou e os jornalistas escreveram o texto. Imagina a complexidade disso? É uma cobertura muito difícil que está pegando todo mundo mesmo.

Eu falo que ciência é difícil, mas, por exemplo, a primeira vez que tive que fazer uma matéria policial na vida, eu quase cometi um erro gravíssimo. Eu não sabia que você não pode divulgar em uma reportagem o nome da testemunha que aparece em Boletim de Ocorrência, por exemplo. Quando você cai na cobertura que não é sua área – como eu, jornalista de ciência escrevendo sobre crime –, a dificuldade é a mesma.

Ana Paula: É um desafio quando o negacionismo da ciência é endossado por quem está governando, ou por figuras públicas, porque ganha muito mais força. Quando está na boca de alguém que tem status, que teoricamente chancela aquela informação. Pensa o leitor ver que o Bolsonaro fala que a cloroquina é a salvação. Ou quando Marcos Pontes fala que tem um novo medicamento que cura. Às vezes, a pessoa lê aquela notícia e é aquela informação que ela vai pegar. A próxima que sair, dizendo que não é bem assim, talvez nem chegue nela. Por isso, é uma cobertura de muita responsabilidade.

Qual a importância da divulgação cientifica para a sociedade? 

Sabine: O que sempre defendemos é que a divulgação científica tem que acontecer para que embase decisões, com as informações disponíveis naquele momento. E por diversos outros motivos: a ciência é financiada por recursos públicos, então divulgar é também uma espécie de “prestação de contas”. A gente entende e defende que a divulgação científica deve ser encarada como parte da própria ciência. Ela não termina no paper, mas na comunicação com a sociedade.

Ana Paula: Essas tomadas de decisão não são apenas em termos de política pública, mas de decisões pessoais. Quando um governo precisa fazer campanha de vacinação, tem que ser baseada em evidência. O cidadão também, porque se ele não quiser comparecer àquela campanha, vai ter pouco efeito. Em todos os níveis, decisões têm que ser tomadas a partir de evidências.

Sabemos que a educação cientifica brasileira é muito ruim. Na avaliação internacional do Pisa, estamos lá embaixo entre os países. Não é que o jornalismo tenha uma função de educação – ele não vai suprir isso. Mas é uma forma de entrar na vida das pessoas, de entender como os resultados são alcançados para que elas possam tomar decisões também.