Lívia de Souza Vieira
Professora de Jornalismo da UFBA e pesquisadora do objETHOS

Em um ecossistema de informações abertas, onde as pessoas obtêm notícias diretamente de fontes – algumas boas, outras não –, jornalistas devem perguntar como agregam valor a esse fluxo. Foi exatamente isso que Jeff Jarvis decidiu fazer: a fim de ampliar vozes qualificadas durante a crise do coronavírus, o professor da Escola de Jornalismo Craig Newmark da City University de Nova York criou no Twitter a lista COVID, reunindo especialistas ativos nas redes sociais com relevante experiência. Com mais de 500 nomes, a lista ganhou tanta importância que o Twitter o procurou para obter ajuda na concessão do selo de verificação para alguns deles.

Colocar os estudos de experts em contexto é um dos maiores desafios para os jornalistas. “Ao cobrir ciência, jornalistas têm o péssimo hábito de tomar a palavra mais recente como a final. Precisamos apresentar a ciência como ela é: um processo de constante descoberta”, afirma.

Nesta entrevista exclusiva, Jeff Jarvis dá dicas sobre como encontrar o especialista certo para cada assunto, como relatar as conclusões de estudos preprint sem espalhar desinformação e também como cobrir discursos presidenciais enganosos sobre a pandemia. “Especialmente com governantes autoritários, devemos verificar e desbancar suas reivindicações; adicionar contexto; e não devemos normalizar suas insanidades, ignorância e mau comportamento”, enfatiza.

“Você descobrirá que uma fonte responsável dirá quando não sabe de algo ou não está qualificada para responder”.

Em um de seus artigos recentes, você argumenta que, em um ecossistema de informações abertas, o jornalismo não fornece mais notícias; elas já foram entregues. Embora isso possa ser visto como um problema para os veículos jornalísticos de referência, você diz que também é uma oportunidade de aprender a ouvir o público de novas maneiras. Que maneiras são essas?

Na Escola de Jornalismo da CUNY, onde leciono, ajudei a desenvolver um novo curso em Jornalismo Social. Não começamos imaginando ideias de histórias para atrair um público. Em vez disso, começamos observando, ouvindo, refletindo e criando empatia com as comunidades para entender suas necessidades, e só depois decidimos como podemos ajudá-las com o jornalismo de várias formas.

É nosso trabalho estar informados e ajudar a melhorar o debate público. Assim, mudei minha definição de jornalismo para: “convocar comunidades a uma conversa respeitosa, informada e produtiva”. A Internet permite que essa conversa ocorra de novas maneiras e nos fornece novas formas de ouvir.

Precisamos perceber que as pessoas obtêm informações por conta própria, diretamente de fontes – algumas boas, outras não – e nós, no jornalismo, devemos perguntar como agregamos valor a esse fluxo. Como tornamos as informações mais abertas e transparentes? Como ajudamos a organizar e facilitar as informações relevantes para as pessoas encontrarem? Como ajudamos as pessoas a julgar a credibilidade das informações?

Tudo isso significa que precisamos repensar o papel do jornalismo em uma nova realidade. Não basta dizer que queremos preservar e proteger o que costumávamos fazer, especialmente agora, especialmente nesta crise. Precisamos reconhecer a nova realidade da rede e entender como podemos agregar valor às comunidades de novas maneiras.

Na cobertura desta pandemia, você também disse que não é trabalho do jornalista contar histórias concluídas e que o conhecimento não vem na forma de uma palavra final, mas como um processo, uma conversa. Você acha que a transparência com a comunidade surge como um valor jornalístico relevante nesse contexto? Como isso pode ser feito na prática, de maneira ética?

Ao cobrir ciência, os jornalistas têm o péssimo hábito de tomar a palavra mais recente como a final. Precisamos apresentar a ciência como ela é: um processo de constante descoberta. Precisamos colocar o estudo mais recente no contexto de estudos anteriores e de perguntas ainda não respondidas. É enganoso escrever uma manchete sobre um único estudo como se fosse uma resposta definitiva. Os cientistas nunca diriam que sabem tudo o que precisam para chegar a uma conclusão final. Por que nós faríamos isso?

Agora estamos trabalhando em um ecossistema de informações abertas. Isso é verdade não apenas para nós, cidadãos comuns. Também é verdade para os cientistas. Nesta crise da COVID, é incrível ver cientistas compartilharem abertamente artigos, pesquisas e dados sobre os chamados serviços de preprints – ou seja, sites onde eles podem postar artigos antes de serem revisados ​​por pares e publicados em revistas científicas. Essa tem sido uma maneira incrível de os cientistas obterem informações mais rapidamente. Milhares de artigos sobre a COVID já foram publicados. Claramente, alguns estudos são melhores que outros; alguns podem ser perigosos se param nas mãos erradas (como o artigo questionável que influenciou Donald Trump a pressionar a hidroxicloroquina como tratamento).

O que é fascinante para mim é que médicos e cientistas estão usando as mídias sociais para revisar estudos na velocidade da internet. Apenas algumas horas após a publicação de um artigo controverso sobre anticorpos SARS CoV2, vi meia dúzia de cientistas altamente respeitados desafiando-o, ponto por ponto, com dados, no Twitter. Os cientistas têm trabalhado com revisão por pares desde a época de Cícero. Eles se adaptam aos tempos e usam as ferramentas disponíveis. Agora, estão usando a web para serem transparentes com suas pesquisas e dados; estão usando as mídias sociais para revisar pesquisas e julgar uns aos outros; e também para explicar descobertas complexas ao público.

Eu celebro a internet aberta porque ela fornece um local para o público ter uma conversa aberta e um local para compartilhar informações. Novamente, nós no jornalismo precisamos aprender como agregar valor a esse novo processo.

Relatar as conclusões de estudos preprint é realmente um desafio para os jornalistas que estão cobrindo a COVID-19. Para não cometer erros e tomar más decisões editoriais, o que os jornalistas devem fazer?

Entrevistei alguns cientistas sobre como os jornalistas deveriam cobrir a pandemia. Eles me deram algumas boas regras para trabalhar. Quando se trata de trabalhos científicos preprint, eles disseram que um jornalista deve citar diversas vezes o autor do trabalho. O jornalista deve sempre buscar a opinião de outros cientistas com credenciais relevantes – e hoje isso é muito mais fácil de fazer online – citando pelo menos dois a três pontos de vista adicionais. Eles também devem fornecer um contexto sobre a pesquisa que veio antes e a pesquisa ainda necessária. E devem examinar a reputação dos autores do artigo.

“Mudei minha definição de jornalismo para: ‘convocar comunidades a uma conversa respeitosa, informada e produtiva’.”

Você criou no Twitter a lista COVID, reunindo especialistas ativos nas redes sociais com relevante experiência. Por que você decidiu fazer isso e o que de mais interessante descobriu neste processo? Você poderia dar algumas dicas sobre como encontrar especialistas no Twitter?

Na última crise da mídia – a que veio com campanhas de desinformação, ajudando a eleger governantes autocráticos em mais de um país –, nossa arma era a verificação de fatos (fact-checking). Nesta pandemia, nosso inimigo é a ignorância e nossa melhor arma para combater isso – como sempre – é a expertise. Eu encontrei cientistas e médicos incríveis falando no Twitter e, por isso, decidi fazer uma curadoria deles: epidemiologistas, virologistas, médicos de doenças infecciosas, geneticistas, médicos da linha de frente, autoridades de saúde pública e alguns jornalistas científicos. Tem sido inestimável para mim poder ver o que os cientistas estão relatando, o que estão questionando, a reação deles ao que nossos políticos muitas vezes desinformados estão dizendo, e assim por diante. Eles até tiram um tempo para responder minhas perguntas.

Foi surpreendentemente fácil montar a lista. Eu verifiquei as credenciais dos cientistas para garantir que eles tivessem conhecimento e experiência relevantes. Olhei para os feeds deles para ver a qualidade do que estão postando. Tomei as recomendações de outros médicos e cientistas que conheço e respeito. Nesse processo, o Twitter me procurou para obter ajuda na concessão do selo de verificação para alguns deles; e também verificou se seus e-mails eram das instituições onde trabalham. A maioria dos cientistas é muito boa. Retiro algumas pessoas da lista quando vejo que estão retuitando estudos questionáveis ​​e estão se esforçando demais apenas para obter atenção e cliques.

Amplificar as vozes dos experts é uma boa maneira de evitar as mesmas fontes oficiais antigas, como os políticos, por exemplo. Nesse sentido, você criticou um artigo de opinião no NYTimes que defendia que a cura pode ser pior que a doença. No Brasil, algo semelhante aconteceu recentemente, quando a Folha de S. Paulo destacou trecho de uma entrevista com o presidente de uma empresa do mercado financeiro dizendo que “o pico de COVID-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela”. Essa afirmação, além de acentuar o preconceito entre classes sociais em um país tão desigual quanto o Brasil, também contradiz o que foi dito pelos cientistas sobre a situação do país. E a fonte não era um especialista em COVID-19. Quais são as consequências desse tipo de informação? Podemos dizer que é uma desinformação?

Quando entrevistei os cientistas, eles deixaram claro que os jornalistas deveriam procurar especialistas com credenciais relevantes: não cite um pediatra sobre um vírus; se você quiser saber sobre epidemiologia, procure um epidemiologista de doenças. O New York Times dedicou um espaço importante aos médicos que fazem dieta para falar sobre epidemiologia; a TV já convidou um cirurgião de coluna para falar sobre a pandemia. Não. Confie apenas nos conhecimentos relevantes. Comecei todas as entrevistas com os cientistas perguntando: qual é a sua experiência; que tipos de perguntas você está qualificado para responder? Eles são muito bons em responder a essa pergunta. Você descobrirá que uma fonte responsável dirá quando não sabe de algo ou não está qualificada para responder. Não confie em alguém que acha que sabe tudo. Não confie em alguém que usa um título para promover uma agenda.

No Brasil, assim como nos EUA, temos um presidente que nega a seriedade da pandemia, é contra o isolamento social e ataca a imprensa diariamente. Como os jornalistas podem reportar eticamente os discursos do presidente, sem espalhar desinformação?

Nos EUA, a TV cometeu o erro de transmitir ao vivo os boletins de atualização e conferências de imprensa de Donald Trump – eles eram realmente apenas pequenos comícios para a TV. Nosso trabalho é informar o público e não fazer nada que o informe mal. Trump estava desinformando o público. Era errado transmiti-lo ao vivo, sem verificação de fatos e contexto. Ponto. Especialmente com governantes autoritários, devemos verificar e desbancar suas reivindicações; adicionar contexto; e não devemos normalizar suas insanidades, ignorância e mau comportamento.