Lívia de Souza Vieira
Professora da UFBA e pesquisadora do objETHOS
A eleição presidencial de 2018 foi marcada por uma enxurrada de fake news espalhadas, principalmente, por aplicativos de mensagem como WhatsApp e Telegram. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) demorou a tomar uma atitude que fosse capaz de conter, em tempo, as irregularidades. O resultado todo mundo já sabe: Jair Bolsonaro, presidente eleito, faz da mentira estratégia política, insulta a imprensa (principalmente as mulheres jornalistas) e corrói nossa frágil democracia por meio de ataques constantes às instituições.
Não há qualquer indício de que a eleição deste ano será diferente. E se for, será para pior. Assim, o jornalismo tem um papel fundamental na cobertura do pleito e precisará investir em algumas frentes éticas:
1. Mais investigação e menos declaração
No último dia 16, a Folha publicou a reportagem “Alckmin recebeu R$ 3 milhões em caixa 2 da Ecovias, diz executivo em delação“. Horas depois, o Estadão “atualizou” a informação, pois a Polícia Federal já havia concluído a investigação em fevereiro, apontando falta de provas que confirmassem a palavra do delator. Como se não bastasse, o Valor acrescentou que o inquérito já estava até arquivado pela Justiça Eleitoral por falta de provas. O ombudsman da Folha detalhou o caso, observando que “a apuração da Folha se mostrara defasada ou que, talvez, o jornal tenha se deixado levar por um vazamento seletivo”. Embora saibamos que o jornalismo político faz uso recorrente de fontes anônimas e informação de bastidores, em uma eleição com tantos interesses em jogo – e após tantos casos de delações que jamais se comprovaram – já é hora de botar o pé no freio. Além disso, colocar a informação sem provas na boca da fonte (como no exemplo acima, o “diz executivo em delação”) não ameniza a responsabilidade da divulgação e consequente reverberação na opinião pública. Informações plantadas tendem a se intensificar conforme a campanha se aproxima. Cabe ao jornalismo investigar antes de simplesmente replicar, para que se diferencie dos boatos que circulam nas redes sociais.
- Sem polêmica disfarçada de pluralidade
Diversidade de vozes é um valor que está na ordem do dia do jornalismo. No entanto, o que temos visto, com indesejável recorrência, são opiniões e comentários que atentam contra valores democráticos. À procura de cliques e engajamento, veículos dão voz a quem defende “racismo reverso” e a quem faz saudação nazista ao vivo, só para ficar com dois exemplos. Tal discurso está mais presente nas colunas, mas também é cada vez mais visto nos editoriais. Os do Estadão, publicados aos domingos, já viraram memes nas redes sociais, pois os leitores percebem a intenção de polemizar e a repudiam. É certo que esse não é o único motivo, pois ideologia e interesses das empresas jornalísticas também devem ser considerados nesta equação. Mas fato é que diversidade não é falsa equivalência e que, em muitos casos, o “dois ladismos” é extremamente prejudicial à verdade factual.
- Censura deve ser chamada de censura
Ontem (27), em decisão monocrática, o TSE censurou manifestações políticas no festival Lollapalooza, classificando como propaganda eleitoral as manifestações das cantoras Pabllo Vittar e Marina. Nas redes sociais, especialistas logo apontaram a flagrante inconstitucionalidade: “A decisão liminar é uma grave censura e, além disso, viola a própria jurisprudência do TSE, que sempre colocou o pedido explícito de votos como necessário para caracterizar a propaganda antecipada”, afirmou o advogado Irapurã Santana. Embora críticas de especialistas tenham estado presentes nas matérias, uma rápida olhada nas primeiras páginas digitais de O Globo, Estadão, Folha, Metrópoles, CNN e Poder 360 mostra que a grande maioria escolheu, em seus títulos, a palavra “proibição” ao invés de “censura”. A exceção foi a Folha, que cravou “TSE diz que Pabllo Vittar fez propaganda eleitoral e tenta censurar atos no Lollapalooza”. Ao não chamar as coisas pelo nome, o jornalismo passa a ser uma espécie de cúmplice, pois ajuda a atenuar e a normalizar casos que tendem a se repetir durante todo o processo eleitoral.
- Maturidade na cobertura de fake news, que estarão sofisticadas
Tudo indica que esta não será a eleição do “tiozão do zap”. Com o acordo de empresas de plataforma com o TSE, espera-se que as fake news disparadas em massa, que marcaram as eleições passadas, agora encontrem outros caminhos. Isso inclui a criação de programas para burlar a limitação de envio de uma mesma mensagem e também o recrutamento de apoiadores por meio de mensagens sobre empreendedorismo e individualismo. Esse discurso, que atinge principalmente os trabalhadores por aplicativos, será estudado pela professora Rosana Pinheiro-Machado. “Tem todo um universo de pessoas muito mais sofisticado do que aquela fake news tosca que a gente combatia. Um ambiente muito mais persuasivo, sutil e poderoso, que é o sonho de uma ilusão de um estilo de vida”, afirma, nesta entrevista para a Folha. Tal contexto reverbera nas eleições e, por isso, a cobertura jornalística deve estar atenta a outras formas de produção de desinformação.
O leitor mais crítico certamente dirá que as recomendações acima soam ingênuas, já que há constrangimentos organizacionais, imperativos econômicos e interesses políticos que acabam por manter o cinismo dos grandes veículos jornalísticos. Assim, embora haja atuação pontual pelas brechas, é realmente mais provável que veículos independentes atuem, de fato, nessas frentes éticas. Não será fácil, mas é possível.