Sylvia Debossan Moretzsohn
Professora da UFF e pesquisadora do objETHOS

Fim de ano é época de retrospectivas: aquele momento em que paramos um pouco para selecionar e refletir sobre o que de mais relevante aconteceu. Pensamos – doce ilusão – que teremos um pouco de sossego para esse trabalho, e que depois vamos descansar. Que nada: o inesperado sempre está à espreita. E, às vezes, fornece exemplos tão escandalosos que prometem entrar para a história.

Foi assim que O Globo ofereceu, ao público em geral e aos pesquisadores de jornalismo em particular, uma surpresa de Natal logo no dia seguinte à festa. No início da tarde de 26 de dezembro, o repórter Guilherme Amado, do blog de Lauro Jardim, publicava nota sobre a viagem de Eduardo Cunha e família a Cuba, “para fechar 2015”. O texto, pleno de ironias – como é próprio desse tipo de colunismo –, começava com uma tola e disparatada oposição entre “o declarado anticomunista” e a “ilha de Fidel”, como se apenas comunistas pudessem ter interesse de viajar para Cuba. Prosseguia com a observação jocosa sobre a improvável hipótese de que o presidente da Câmara fosse “pedir asilo ou tentar uma declaração de apoio do ditador”. Mas o principal apelo era a foto “cheia de significado” publicada por uma das filhas de Cunha – na verdade, sua enteada – no Instagram.

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A imagem provocou a esperada excitação ao circular na internet e logo se instalou a polêmica sobre a identidade da modelo. Não se tratava da moça em questão, como muitos precipitadamente concluíram – e não por acaso, porque textos de duplo sentido induzem a esse tipo de equívoco, ainda mais com o automatismo que prevalece na rede: a foto era de uma dessas subcelebridades que proliferam por aí.

Porém, o principal era o erro elementar de informação, pois o presidente da Câmara não tinha viajado, apenas comparecera ao aeroporto para despedir-se da família que, esta sim, pegaria o avião. Menos de duas horas depois da publicação, Cunha maltratava o repórter – e, de quebra, o idioma, ignorando a crase – no twitter: “Para os idiotas desinformados que plantam notícias falsas. Estou no Rio e segunda a tarde estarei em Brasília”. Seguiram-se vários outros posts em que o deputado tripudiava sobre o titular da coluna, chamado de “pilantra”, e o repórter, “pilantrinha assistente”. Alguns desses posts foram reproduzidos pela revista Exame.

Pior do que ter proporcionado essa lamentável oportunidade a um político atolado em acusações de corrupção foi a solução encontrada para retificar as informações. Em vez de reconhecer e corrigir o erro, como seria esperado, a coluna optou por encobri-lo. Como? Alterando todo o texto, a partir do título.

Assim, “Eduardo Cunha viaja com a família para Cuba para fechar 2015” virou “Eduardo Cunha embarca família para Cuba para fechar 2015”. “O declarado anticomunista Eduardo Cunha e família embarcaram hoje…” passou a ser “O declarado anticomunista Eduardo Cunha embarcou a família hoje…”. “Não consta que Cunha vá pedir asilo…” se transformou em “Não consta que algum Cunha vá pedir asilo…”.

O toque final é uma pérola do nonsense: a “atualização” no rodapé do texto retificado, informando que “Eduardo Cunha não embarcou. Estava no aeroporto apenas para embarcar a família para Cuba”.

De modo que o incauto e retardatário leitor ficará sem entender nada: afinal, se o texto em momento algum afirma que o deputado viajou, qual o sentido daquele alerta?

É este o detalhe que assegura a esse episódio um lugar especial na história da pior prática do jornalismo.

Isso simplesmente não se faz

Em sua dissertação de mestrado, apresentada em 2014, Lívia Vieira apontou ao mesmo tempo a ausência e a urgência de uma política para a correção de erros no jornalismo on line. Um brevíssimo resumo de suas sugestões para o estabelecimento de tais “parâmetros éticos” pode ser lido aqui. Diante da repercussão desse caso de escandaloso desrespeito ao público, a pesquisadora comentou: “embora o papel da academia e da crítica de mídia sejam muito importantes, passou da hora de se discutir isso a sério nas redações. Tá ficando feio demais”. O problema é que a produção – a boa produção, bem entendido – na academia e na crítica de mídia é solenemente ignorada pela maioria dos jornalistas, sobretudo por quem exerce posições de comando. Não chega às redações. Não faz nem cosquinha.

Numa rápida busca pela repercussão da nota falsa, Lívia se deparou com exemplos como este, que, como de hábito, “cozinham” o texto e lhe adicionam os mais variados tipos de molho. Assim, Cunha teria viajado “na calada da madrugada”, como se fosse um clandestino, e “foi visto pegando um avião”.

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Esse jornalismo arrogante, feito de gracinhas e duplos sentidos, não resiste à tentação de imagens como essa. Esse jornalismo feito de especulações e “fontes bem informadas” está sempre sujeito a essas derrapagens. Podemos ridicularizar à vontade a situação, sobretudo porque se trata de uma reincidência: em outubro, como se sabe, Lauro Jardim estreou sua coluna com uma “bomba” que virou manchete do jornal, uma informação de uma dessas “fontes bem informadas” sobre a delação premiada de um investigado na Operação Lava-Jato que incriminava um dos filhos de Lula, e demorou quase um mês para pedir desculpas. Aqui mesmo tratei desse episódio e de suas implicações, confrontando o erro grave e grosseiro com a promessa de credibilidade. Mas gozar com essa situação é muito pobre e muito pouco, diante do abismo que separa jornalistas contratados a peso de ouro e os que restaram no chão da fábrica após sucessivos passaralhos, e que são cobrados diariamente – com a delicadeza que se pode supor – pela qualidade de um trabalho que, diante da sobrecarga inevitável, já não conseguem realizar a contento. É também muito pobre e muito pouco para quem entende a necessidade de se preservar o jornalismo como fonte de informação confiável, especialmente diante do quadro de absoluta confusão que reina na internet.

A credibilidade é decerto um valor crucial para o jornalismo, mas, ao contrário do que se costuma pensar, não é um conceito simples, como Marcia Benetti e Silvia Lisboa demonstraram em artigo recente na revista da SBPJor. Discutir a complexidade dessas questões teóricas não é para qualquer um. Mas ninguém precisa ser especialmente qualificado intelectualmente para saber que essa desastrada tentativa de encobrir o erro, como se relatou aqui, é algo que simplesmente não se faz.