Edição, texto e imagens: Amanda Miranda e Dairan Paul

A pesquisadora Marcia Veiga, pós-doutoranda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é a última entrevistada do objETHOS em uma série de conversas com pesquisadores. Anteriormente, Danilo Rothberg (Unesp), Leonardo Foletto (UFRGS), Gisele Reginato (UFRGS), Josenildo Guerra (UFS) e Edgard Patrício (UFC) discutiram questões éticas no jornalismo. Todas as entrevistas foram realizadas durante a 14ª SBPJor, na Unisul (Palhoça/SC), em novembro.

Márcia é autora do livro “Masculino, o gênero do jornalismo: modos de produção das notícias” (Editora Insular), que traz resultados da sua dissertação de mestrado, premiada pela SBPJor em 2011. Com a tese “Saberes para a profissão, sujeitos possíveis: uma olhar sobre a formação universitária dos jornalistas e as implicações dos regimes de poder-saber nas possibilidades de encontro com a alteridade”, conquistou menção honrosa no prêmio Capes de Teses.

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Na conversa a seguir, a pesquisadora fala sobre os principais problemas do jornalismo, mas lança um olhar otimista para o que muitos enxergam como uma crise: isso porque, segundo ela, novas vozes começam a ser ouvidas, tensionando modos de produção hegemônicos. Ao discutir gênero, alteridade e o ensino do jornalismo, ela reforça o papel da ética como um espaço de permanente reflexão.

Na sua opinião, qual o grande dilema ético do jornalismo atualmente?

Uma das grandes questões que acho muito desafiadora é a possibilidade de escuta do outro. O jornalismo acaba sendo historicamente um jornalismo branco, de classe média, heterossexual, e representando muitas visões de mundo dominantes. E, no caso do Brasil, em que nós temos uma sociedade que é extremamente desigual, o jornalismo é uma dessas instituições de poder e de saber que acaba reproduzindo esses sistemas de valores, sem uma condição de escuta e de aproximação com o outro: ele acaba, de fato, não sendo democrático.

Isso me parece que tem a ver não só com a instituição das grandes empresas, mas com as condições da profissão, que me parece não ter um treino para essa possibilidade de encontros com a alteridade – encontro com o outro. Isso acaba fazendo com que no processo da narração, para a produção simbólica do jornalismo hegemônico, esses diferentes se tornem desiguais. Tu não consegues sair do teu universo de valores, enxergar o outro com outras perspectivas, acolhendo a diferença sem, necessariamente, ter que transformá-la em desigualdade.

Isso é um desafio porque nós somos etnocêntricos. Os antropólogos, por exemplo, que também têm um convívio com o outro, têm um treino para poder ter essa relação de alteridade. Mas nós, como jornalistas, me parece que não temos essa formação. E tu entrando no jornalismo hegemônico, tu não tem só a empresa, mas um conjunto de profissionais que acaba compartilhando essa visão de mundo dominante, e, ainda que inconscientemente, nas produções simbólicas, reproduzindo esses sistemas de valores. Acaba havendo, de antemão, uma opacificação, uma hierarquização dos sujeitos, e isso perpassa toda a narrativa.

E você acha que essa seja uma questão relacionada ao ensino do jornalismo?

Eu acho que sim. A ampla maioria das pessoas que estão na redação hoje em dia, segundo as pesquisas da Fenaj e da UFSC, são formadas na universidade. Também se aprende a prática na universidade e na empresa, mas me parece que é a universidade o lugar para esse tipo de reflexão, para colocar o sujeito nessa perspectiva. Acho que a formação pode sim contribuir para a formação da identidade profissional. E isso é permanentemente um dilema ético, porque estar em contato com o outro é a matéria prima do jornalismo.

Quais são as desigualdades sociais no Brasil? De classe, de raça, de gênero e de sexualidade. Esses são os marcadores sociais que vão te mostrar que a cada 15 segundos uma mulher é vítima de violência, a cada 27 horas uma pessoa LGBT é morta, que os jovens negros têm duas vezes e meia mais chances de serem assassinados, que as mulheres negras estão na base da pirâmide em termos de pobreza e de acesso a direitos.

Então, quando estamos falando desses marcadores, que são a matéria-prima do jornalismo, me parece que o jornalismo hegemônico tem contribuído muito mais para reproduzir um sistema de valores que transforma as diferenças em desigualdades do que dar a voz e a escuta àquele que é diferente. Isso é uma atividade cotidiana, pois o tempo todo a gente está encontrando pessoas diferentes, a gente tem histórias de vida – que muitas vezes não são escutadas justamente por algo que é inconsciente, nossa ação etnocêntrica de julgar.

Esse treino, esse permanente refletir é ético. A ética não é estanque. Tu estás em permanente reflexão sobre tua prática. Eu aposto muito no resgate do sujeito, do profissional, no investimento em valores de um jornalismo que seja um jornalismo crítico e que isso seja feito na universidade, que é ali que isso pode acontecer, porque a universidade é o espaço para isso.

Você acha que as redações, tal como as concebíamos no início do século, estão preparadas para esses desafios?

Em alguma medida, elas estão sendo afetadas por esse novo momento. O jornalismo que aí está, me parece que não está conseguindo se sustentar nessas bases que não dão conta, que não respondem ao seu público. Não estão dando conta justamente dessa diversidade de sujeitos, de pensamentos e complexidades. Elas estão sendo afetadas e demandadas também.

Mas eu acho que está tudo muito em movimento ainda. Esse me parece ser o momento de uma crise, mas eu acho muito bom, porque algumas coisas começam a se rearticular. E eu não vejo essa crise do jornalismo descolada da crise das outras instituições. Há uma crise de representatividade, de credibilidade, sobretudo de escuta. As ações do Estado tem sido muito mais voltadas para quem financia campanha do que para a própria população, não há uma escuta do que as pessoas precisam nos seus bairros, nas suas vidas.

Da mesma forma, o jornalismo tradicional sempre cobria a partir de um determinado lado, ouvindo a partir de determinadas fontes. Hoje há um jornalismo indo cobrir a partir de um outro lado e indo buscar outras vozes que têm sido historicamente silenciadas, numa relação horizontal e não vertical. Essa coisa vertical, de uma autoridade autoritária, de um saber que se impõe, de um poder que se impõe, parece que está ruindo.

Há um outro sistema de valores surgindo com a ideia da colaboração, do trabalho em rede, de algo horizontal. E isso funciona de uma outra maneira: é uma outra ética também, de se aproximar de outros sujeitos, reconhecendo-os como fontes, como quem necessita estar nesse diálogo. Não há como não tensionar o jornalismo com todas as instituições sendo tensionadas. As estruturas estão sendo sacudidas.

A discussão sobre gênero já chegou nas redações?

Está chegando nas redações porque a gente vive uma efervescência nas discussões sobre gênero. Nas redes sociais, há um resgate das discussões feministas, por exemplo, que sempre existiram. A gente tem o movimento feminista, no Brasil, produzindo conhecimento desde a década de 1970, mas também sempre foi algo à margem, sempre foi colocado como um saber menor.

Os conceitos de gênero com os quais eu trabalho ajudam a perceber como todas as coisas do mundo são constituídas por gênero. A gente pode perceber isso pela linguagem e como nessas classificações aquilo que é associado ao masculino é considerado como melhor. Essa discussão começa a chegar por diferentes caminhos, também começa a ser provocada dentro das universidades, é algo que começa a ser tensionado. A gente vê o caos, mas vêm vindo diferentes vozes, não só sobre gênero, mas sobre raça, sexualidade, demandas que os movimentos sociais já trazem há muito tempo.

Não dá para pensar gênero sem pensar classe, raça, sexualidade e nas suas intersecções. Entre duas mulheres, há diferenças de cor, geração, elementos que vão dar condições de desigualdade. É fundamental que se possa falar e pensar sobre isso. Porque a gente nasce inserido em uma sociedade que é machista, racista e LGBTfóbica. O projeto de estado nação brasileiro foi forjado num ideal de branquitude e masculinidade que a gente não conhece e continua imperando. A gente não conhece e a gente não sabe o que é racismo, o que é machismo. E como a gente não conhece, a gente não fala sobre isso e vai sendo socializado sem se dar conta.

Você considera que essa também é uma questão ética?

Como a cultura está em permanente movimento, você tem que estar permanentemente te repensando e repensando essas questões e a escuta sobre o outro. Porque alguém vai te dizer: “olha, isso é racismo”. E você vai dizer: “não, isso é vitimismo”, para tentar se defender na relação de alteridade. Não! Para e escuta.

Eu, por exemplo, estudo gênero desde 2000 e posso te dizer que tenho aprendido muito mais com uma nova geração que vem aí, que está acelerando o processo. Tenho conhecido pessoas trans que me trazem experiências que eu não teria, e que me levam a estudar mais sobre isso. A complexidade do ser humano precisa deixar a gente aberto o tempo todo. É essa abertura para continuar aprendendo que nos coloca em movimento. E é num exercício da ética que podemos permanentemente refletir sobre isso.

A gente vive, do ponto de vista da episteme, num paradigma positivista e masculinista. A forma como o jornalista conhece é a forma como ele vai dar a conhecer. E este afastamento do sujeito impede que ele possa fazer uma reflexividade sobre sua prática e possa permanentemente refletir sobre sua ética.