Dairan Paul
Mestre em Jornalismo pelo POSJOR e pesquisador do objETHOS

A exclusão da população pobre nos jornais indianos é um resultado tanto da crise na ética jornalística, como também da concentração dos meios de comunicação e da própria democracia recente do país. No ranking mais recente sobre Liberdade de Imprensa divulgado este ano pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, Índia está no 136º lugar, em um total de 180 países – o Brasil não está muito à frente, em 103º. Ética, propriedade dos meios e contexto histórico são três variáveis observadas pela professora Shakuntala Rao como determinantes para o impacto negativo nas práticas jornalísticas da Índia.

Rao é professora no departamento de comunicação da State University of New York, em Plattsburgh, e tem se dedicado a estudar temas como ética global de mídia, cultura popular e jornalismo no sul da Ásia. “Journalism, Democracy and Civil Society in India” é o seu último livro, editado junto com o pesquisador Vipul Mudgal.

Na entrevista a seguir, Rao comenta alguns de seus trabalhos mais recentes, como um artigo em que analisa a cobertura televisiva da Índia sobre casos de estupro, o que desvela as relações de classe e gênero que afetam a ética profissional. A pesquisadora também discute a contribuição dos estudos pós-coloniais para a ética jornalística através de um resgate da filosofia hindu, e defende a dignidade humana como conceito central para a prática jornalística.

Em um de seus artigos, a senhora utiliza a glocalização para entender o global e o local como complementares, e não como oposições. Como esta teoria pode nos auxiliar a compreender a ética jornalística em diferentes países?

Meu interesse na glocalização veio de tentar entender como poderíamos problematizar práticas locais, mas sem impor um sistema de valores que poderia ser visto como estrangeiro, elitista, etc. A parte difícil tanto sobre a teoria indigenista como a glocalização é assegurar que nenhuma delas seja traduzida como algo “paroquial” a ponto de perder toda a sua energia crítica. Por exemplo: nós sabemos que o feticídio de gênero é um problema indiano único, onde um grande número de mulheres, voluntariamente ou à força, abortam fetos femininos, ou matam seus bebês meninas recém-nascidas. Não há realmente nenhuma versão paralela disto no Ocidente ou na sociedade americana; então, como a glocalização da prática jornalística e do conteúdo das notícias pode nos ajudar aqui?

Eu orientaria jornalistas a uma ética global de dignidade humana para relatarem feticídios femininos não como um crime cometido por uma única mulher, ou mesmo um casal, mas para verem como relações familiares, religiosas, comunais, tribais e de casta criam condições que levam a estes assassinatos. Reportar sobre relações de gênero se torna ainda mais complicado numa sociedade onde a religião sempre exprimiu alta consideração a deusas. Por um lado, a mulher é reverenciada como uma deusa, aquela que dá vida e é considerada sagrada; por outro, ela é punida quando falha em produzir sucessores masculinos. A matriz da hierarquia social é complicada e requer um nível profundo de conhecimento local. Para jornalistas, a dignidade humana como um conceito ético global pode ser útil, mas deve ser aplicado com cuidado e entendendo as normas locais.

Baseado na sua análise dos contextos indianos e chineses, como a senhora avalia o impacto geopolítico na ética jornalística destes países?

Eu não sei se posso responder a esta questão sem soar muito pessimista. Em ambos os países, nós temos visto um declínio real de qualidade na mídia e no jornalismo. Claro, pode-se entender que a Índia é uma democracia funcional pelos últimos 70 anos e que a China está sob as regras de um mesmo partido comunista pelos mesmos anos. Ambos estão classificados muito abaixo no índice de liberdade de imprensa, com a China na posição 176 e a Índia em 136, em um total de 180 países.

Na minha opinião, não deveríamos olhar para nenhum destes países como modelos a serem seguidos para práticas éticas do jornalismo. Eles têm um alto nível de corrupção na mídia, ambos enfrentam censuras governamentais, e suas normas jornalísticas são novas. Se a questão é como as práticas jornalísticas destes países podem impactar o mundo, temo que a influência seria negativa. Vi isto em primeira mão quando realizei um treinamento de ética jornalística no Sri Lanka. Existiam muitas imitações e venerações das práticas jornalísticas indianas, e foi difícil convencer os jornalistas do Sri Lanka que eles não deveriam adotá-las sem antes ponderar e avaliar a ética e os valores destas práticas.

No artigo “Covering rape in shame culture”, a senhora traz um balanço sobre a cobertura televisiva da Índia em casos de violência contra mulheres. Neste contexto, como as práticas jornalísticas têm sido afetadas por questões de classe e de gênero?

Neste artigo, eu critico coberturas que apenas apresentam o estupro como um problema quando ele acontece com mulheres de casta em classes altas e médias. Pesquisas mostram que a maior parte da violência sexual na Índia é cometida contra dalit, ou mulheres de baixa casta, em locais públicos – ruas, banheiros públicos femininos e campos. Seus autores são predominantemente proprietários que pertencem à alta casta. Além disso, mulheres dalit que são vítimas de crime enfrentam grandes atrocidades de natureza dolorosa (assassinato e mutilação) quando comparadas a vítimas das castas mais altas. Elas também têm muito menos acesso ao sistema legal e frequentemente, não chegam à delegacia a tempo, o que as impede de apresentarem uma queixa.

Pobres, mulheres e homens dalit não têm conseguido mobilizar táticas de pressão em instâncias domésticas e internacionais para constranger e expor o estado na esperança de convencê-lo a reconsiderar políticas falhas e assegurar justiça aos pobres. Minha crítica foi direcionada à mídia indiana que atendia exclusivamente às audiências urbanas, de classe média e alta casta ou, como eles referenciam, as PLU (people like us – pessoas como nós). Em um país com mais de 400 milhões de pobres, é chocante observar a falta de cobertura destas pessoas e destas vidas.

Há uma crise real na sociedade indiana, e que vem crescendo a um ritmo mais rápido do que antes, com uma desigualdade de renda entre os ricos e os pobres, entre os urbanos e os rurais. A mídia, por outro lado, parou de cobrir, em sua maior parte, as vidas dos pobres. O que você tem são casos como o estupro de 2012, em Delhi, onde a mídia se torna obsessiva com um crime particular, cobre-o e então avança para a próxima história. Questões críticas de classe, casta e desigualdades de gênero não chegam às primeiras páginas dos jornais ou ao horário nobre dos canais de televisão.

No seu estudo seminal da linguagem inglesa e hindu nos jornais indianos, o pesquisador Vipul Mudgal descobriu que cerca de 2% da cobertura diária era dedicada às questões da Índia rural, suas crises e ansiedades. Este número, ainda que ainda que minúsculo, foi ilusório, porque a maioria das notícias não era sobre a vida dos agricultores, sua pecuária ou qualquer outra preocupação que eles poderiam ter. A maioria das notícias era sobre crime, violência, acidente ou desastres. Nós estamos falando sobre uma cobertura de aproximadamente 600 milhões de pessoas, dois terços da população da Índia, que vivem suas vidas em vilarejos e pequenas cidades (kasbas). Esta história de exclusão é uma crise tanto na ética jornalística como na prática do jornalismo, na concentração das mídias e na durabilidade da própria democracia indiana.

No artigo “Practices of Indian journalism: justice, ethics, and globalization”, presente no livro “Media ethics and justice in the age of globalization”, editado pela senhora e pelo pesquisador Herman Wasserman, é apresentado o conceito de justiça do filósofo e economista indiano Amartya Sem, que se desdobra nas ideias de niti e nyaya.  Como eles podem ser articulados à prática jornalística? 

Este é um desafio para nós que pretendemos encontrar uma utilidade para a filosofia na mídia e nas práticas jornalísticas. Tanto o niti como o nyaya vêm da filosofia Hindu, que reconhece a onipresença de uma realidade última, mas permitindo múltiplas interpretações para essa realidade.

O mais significativo desta filosofia são as seis darsanas, ou pontos de vista. A palavra darsana vem da raiz drs, que significa “ver”, e darsana é um termo sânscrito referente à filosofia. Os seis darsanas mais conhecidos são nyaya, vaisesika, samkhya, yoga, mimamsa e vedanta. Dentre estas filosofias, nyaya é referenciada como a ciência da justificativa lógica, e representa um método de investigação filosófico para os aspectos objetivos e subjetivos do conhecimento humano.

O fundador da darsana nyaya seria Gautama, no século 4 a.C, referenciado na antiga literatura Hindu como um aksapada (“o de olhos fixos nos pés”), uma vez que ele era visto habitualmente com seus olhos direcionados para os pés enquanto andava. A nyaya darsan de Aksapada Gaudama deu significado para o “entrar na subjetividade” – ou seja, uma investigação analítica de um assunto através do processo da razão lógica. O propósito do nyaya, consequentemente, seria de permitir que atingíssemos os objetivos mais valiosos da vida – salvação, libertação e liberdade.

Um elemento crítico da filosofia nyaya é a remoção do conhecimento falso (a-nyaya). Os antigos nyayayikas, seguidores da filosofia nyaya, acreditavam que o mundo era pleno de tristeza, e que as pequenas porções de prazer que alguém experimentava serviam apenas para intensificar a força dessa mágoa. Para uma pessoa sábia, portanto, tudo é tristeza (sarvam duhkham videkinah); o sábio nunca está ligado aos prazeres da vida, o que apenas nos levaria a mais dores. É com a destruição do a-nyaya que nossa ligação ou antipatia a coisas, e nossa ignorância de e sobre elas, são permanentemente destruídas. Niti, por outro lado, é extraído dos escritos posteriores feitos acadêmicos da navya-nyaya (uma nova escola nyaya) e se refere aos procedimentos corretos, às regras formais e às instituições; nyaya envolve um foco mais amplo e inclusivo no mundo – uma vez que ele emerge das instituições que criamos –, e é central para criar uma sociedade sustentável e justa. A distinção-chave, como observou Amartya Sem, é que a realização da justiça no sentido do nyaya é “não apenas uma questão de julgar instituições e regras, mas de julgar as próprias sociedades”.

Em minha opinião, a filosofia nyaya pode proporcionar ao jornalismo as ferramentas para um raciocínio moral necessário para efetivamente escrever e relatar sobre pessoas e sociedades. A mídia deve promover abertamente as várias formas de raciocínio que a filosofia nyaya advoga. Por exemplo, os processos de samcaya (dúvida) e tarka (debate) devem sustentar as práticas de um jornalismo global. Deve-se ter uma compreensão compartilhada e ampla de que o significado é construído através do upamama (comparação), e que o nyaya é alcançado através da razão. É interessante observar que na jurisprudência indiana a palavra nyaya tem sido utilizada de forma indistinta com lógica, justiça e equidade.

Outro aspecto da filosofia nyaya convocaria os jornalistas a focarem na remoção ou negação do a-nyaya. Isto é particularmente importante em uma sociedade como a Índia, caracterizada tanto por hierarquias de classe como de castas. Um modelo de jornalismo que foque no ­a-nyaya criticaria a própria natureza da produção de conhecimento em um esforço de revelar como o a-nyaya é perpetuado pela exclusão dos pobres e marginalizados.

A verdadeira natureza do jornalismo democrático, para os nyayayikas, seria realizada somente uma vez que a nyaya for feita. A justiça sendo feita é onde a mídia pode desempenhar um papel crítico. Diferente do niti, o nyaya não é simplesmente sobre correções legais, mas também sobre apoio popular – uma confusão de jurisprudência com democracia. Se um julgamento inspira confiança e apoio geral, então é bastante provável que possa ser mais facilmente implementado. A mídia é responsável por garantir a transparência do processo de raciocínio, na medida em que é isto o que une a sociedade e promove o reconhecimento democrático. Para jornalistas dedicados ao nyaya e à remoção do a-nyaya, a justiça sendo feita iria além da limitante reportagem de acontecimentos diária. Jornalistas seriam exigidos a investigar e relatar sobre falhas sistêmicas e questões globais.

Como nós podemos integrar as teorias pós-coloniais – como a teoria indigenista, por exemplo – aos estudos de mídia e, especificamente, ao campo da ética de mídia?

O campo dos estudos pós-coloniais teve dificuldades com a ideia de indigenismo por um longo tempo. A maior parte da discussão, infelizmente, se tornou elitista [ao dizer] que o termo “indígena” foi, mais tarde, desvirtuado por aqueles que defendiam um regionalismo limitado, um nacionalismo étnico e/ou perpetuavam hierarquias raciais. Nós que escrevemos sobre a ética indígena nunca defendemos uma interpretação isolada do indigenismo – pelo contrário. Vou detalhar mais sobre a filosofia nyaya com um exemplo da teoria ética do indigenismo e esboçar o seu significado pós-colonial sem reduzi-la a uma teoria a-histórica ou “não-contaminada”.

O artigo que escrevi sobre o caso do estupro em Delhi chamou a atenção para a crise de estupros na Índia. Uma das consequências positivas da manifestação estudantil decorrente do incidente bárbaro foi expor tanto a prevalência da brutalidade sexual na Índia como também as falhas da mídia em relatá-la seriamente, assim limitando a discussão pública e a possibilidade de uma mudança social. Ainda que indianos comprem mais jornais diariamente do que qualquer outra nação, os relatos de abusos e assédios sexuais têm sido raros. A totalidade da cobertura midiática deste caso particular levou a um conjunto de mudanças políticas, mas a questão permanece é se tais mudanças, e a vasta cobertura da mídia, impactaram a realidade da vida cotidiana da maioria das mulheres.

Em 2012, a Índia foi classificada como o pior país para mulheres dentre os países do G20, considerando índices como qualidade de saúde, ausência de violência, escravidão e tráfico, participação na política, oportunidades de trabalho, acesso a recursos como educação e direitos de propriedade. Em 2014, o transporte público de Delhi foi classificado como o quarto mais inseguro dentre as maiores capitais do mundo.

É aí que a teoria indígena da ética, como o nyaya, pode nos dar alguma direção. O nyaya, nas práticas de mídia, seria mais abrangente do que simplesmente aumentar a cobertura de estupros como casos individuais ou crimes isolados. Jornalistas fundamentados no nyaya devem buscar entender a própria natureza da desvantagem feminina na Índia, o que pode ocorrer de maneiras diferentes e ir além da instância particular do estupro. Se a falta de segurança de e para mulheres é um aspecto, o fenômeno da “preferência masculina” em decisões familiares é outro. A preferência masculina está intimamente ligada ao problema enraizado das “mulheres desaparecidas”, que se refere à escassez do número real de mulheres a partir do número que nós gostaríamos de ver dado o tamanho da população masculina, e a proporção mulher-homem que seria esperada se a equidadade de gênero existisse na sociedade indiana. Quando nós falamos de nyaya como uma teoria indígena da ética, nós não podemos interpretá-la como uma máxima antiga que, uma vez adotada, transformará milagrosamente a Índia e fará retorná-la ao seu passado puro e intocado onde discriminação de gênero, estupro, violência e escravidão sexual não existiam. Políticos nacionalistas têm feito um bom trabalho em capturar a linguagem da teoria indigenista e fixá-la nas relações de gênero. Para eles, a resposta à crise de estupros é ter as mulheres indianas “puras” em casa, escondidas da visão pública e que, portanto, não “encorajam” homens a agredirem seus corpos. Nós devemos resistir a todas estas interpretações e cooptações da teoria indígena no discurso público e na mídia.