Rogério Christofoletti
Professor na UFSC e pesquisador do objETHOS

Na manhã da segunda-feira, 2 de outubro, veio a notícia da morte trágica do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier de Olivo. Sem esconder sua indignação, um professor disse aos colegas em reunião: “Se precisavam de um cadáver para parar essas ações abusivas da Polícia Federal, infelizmente, já temos!”. A reunião foi interrompida e a rotina acadêmica pairou suspensa. Foram dias de comoção, revolta e críticas à justiça, à PF e à mídia que contribuiu para a espetacularização das ações de prisão, exposição pública, intensificação da suspeita e erosão de reputações. “Quem sabe isso tudo não provoca uma discussão nacional e não assistimos a uma mudança da polícia e do jornalismo?”, ouvi de uma outra professora. Mas não foi preciso esperar muito para termos a resposta. Dois dias depois do enterro de Cancellier, policiais federais voltaram às ruidosas ações e jornalistas reservaram os maiores e mais nobres espaços no noticiário para a prisão de Carlos Arthur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro.

Na tarde de 5 de outubro, a homepage da Folha de S.Paulo cravava manchete, foto do dirigente sendo escoltado por policiais e até um infográfico com a evolução patrimonial de Nuzman em uma década. O concorrente O Estado de S.Paulo também estampou manchete e aplicou foto, ocupando o alto da sua página de entrada. O G1 poupou Nuzman do registro cercado pela PF, mas não perdoou na chamada: “Compra de votos na Rio 2016. MPF diz que Nuzman esteve na ‘farra dos guardanapos’ em Paris”. O portal Terra trouxe chamada discreta na sua homepage, mas ilustrada pela foto da prisão do dirigente, e o R7 informava que “Nuzman ocultava 16 barras de ouro na Suíça”.

Recorte da homepage da Folha de S.Paulo na tarde de 5 de outubro.
Prisão de Nuzman ocupou o alto da homepage do Estadão.
Recorte da homepage do G1, em 5 de outubro.
O portal Terra também trouxe a prisão de Nuzman.
Parte da homepage do R7 na manhã de 5 de outubro.

A sensação em torno da prisão de Carlos Arthur Nuzman não ficou restrita aos sites. As emissoras de TV exploraram o fato desde as primeiras horas da manhã, e a Rede Globo chegou a colher imagens aéreas da operação a partir de seu helicóptero. No dia seguinte, 6 de outubro, pelo menos cinco dos maiores jornais do país trouxeram chamadas em suas capas, acompanhadas de fotos sendo conduzido por policiais. Foi o que viram os leitores de Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, O Globo, Extra e A Tarde em suas versões impressas.

Nuzman pode ter culpa no cartório? Pode. Pode ser inocente? Por mais incrível que pareça, também pode. Então, não se trata aqui de verificar sua responsabilidade ou não nos mal feitos da acusação. A questão é o método adotado pela polícia, pela justiça, pela imprensa para exibi-lo como um troféu. Mais uma vez, o jornalismo brasileiro atira ao público faminto por “justiça” um produto das ações policiais…

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Sangue e espuma

É evidente que a prisão do principal dirigente esportivo do país é notícia, e é esperado que o jornalismo se ocupe disso. A questão de fundo é como as ações da polícia e da justiça têm sido retratadas pelos meios de comunicação. E é possível perceber que, de forma geral, o jornalismo vem registrando essas operações com pouca ou nenhuma crítica ou questionamento sobre os procedimentos. É possível observar um certo deslumbramento das redações em meio às sirenes e as escoltas armadas. E o que é mais preocupante: a mídia tem noticiado com profusão esses acontecimentos, aparentemente, sem qualquer preocupação com os efeitos da explícita exposição das pessoas envolvidas. Trocando em miúdos: os jornalistas cobrem as prisões e estampam publicamente os rostos e nomes dos detidos, mesmo que não se saiba em detalhes do que são acusados ou que provas foram colhidas para justificar seus aprisionamentos.

Nos casos Cancellier, Nuzman e tantos outros, prevalece uma perigosa reverência do jornalismo às autoridades policiais. Basta apenas que a PF avise a deflagração de uma operação para cumprir mandados judiciais que as redações correm ao local para registrar tudo. Tudo não. Apenas o que é permitido aos repórteres. Detalhes importantes são deixados de lado, sob a alegação de que a investigação está sob sigilo de justiça ou qualquer outro impedimento. Os repórteres têm, então, os detidos e algumas pistas do que levou àquilo. Entrevistas coletivas são convocadas não para esclarecer completamente os fatos, mas para adestrar setoristas ou fazer convergir narrativas e conformar versões oficiais. Alguns jornalistas chegam a questionar as autoridades, mas elas se esquivam, apostando na ignorância, despreparo, receio e indisposição dos profissionais de mídia de se contrapor à versão oficial.

O resultado é a exposição massiva de investigados, que se convertem quase que imediatamente em culpados, graças aos contextos incompletos que são oferecidos ao público. Numa sociedade altamente polarizada como a brasileira, permeável ao discurso de ódio e exausta com a impunidade histórica, funciona como um balde de gasolina para apagar um foco de incêndio. Esses elementos ajudam a moldar uma sociedade punitiva, que vibra com as prisões de Nuzman e dos chefes do narcotráfico, e que comemora o vazamento das fotos do ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, com a cabeça raspada no presídio. A sociedade punitiva ri e celebra diante das imagens de outro político, Anthony Garotinho, esperneando na ambulância, prestes a ser detido, e compartilha nas redes sociais piadas e memes sobre Lula, Vacari, Zé Dirceu e outros personagens infames. Essa sociedade julga, difama, exila, condena.

Essa sociedade é a mesma que se comove com o suicídio de Cancellier, mas que espuma pela boca para ver mais sangue nos morros porque “bandido bom é bandido morto”. Esta sociedade punitiva concorda com os métodos da polícia e vai às ruas para defender a Operação Lava-Jato. Com isso, confunde rigor com abuso, e até aceita algum eventual exagero pelo bem maior, que é sanear o país e exterminar a corrupção.

Crítica e cinismo

Na sessão fúnebre que velou o reitor da UFSC, na terça-feira 3 de outubro, professores e autoridades políticas criticaram a justiça, a polícia e a mídia. Das três instituições, apenas a última se permitiu uma autocrítica, e ela veio expressa na forma de editoriais e de colunas. Na Folha de S.Paulo, a ombudsman Paula Cesarino Costa lembrou que seu jornal só foi publicar uma retificação da cobertura do caso 23 dias depois da notícia da prisão do reitor. “A admissão do erro foi direta, mas insuficiente e demorada”, escreveu em sua coluna ontem, domingo (8), intitulada “Jornalismo de ouvidos moucos”, em alusão à fatídica operação da PF. No mesmo jornal, Élio Gaspari também frisou que a informação de um rombo de R$ 80 milhões na UFSC era “mentira”. O colunista havia ignorado o assunto até então e tratar do tema com essa contundência agora não chega a ser difícil.

O cinismo também esteve em pauta na imprensa local. Na edição de 3 de outubro, o Notícias do Dia publicou o editorial “Momento para refletir”, em que critica a espetacularização das operações: “Essa prática, aliás, tem se multiplicado no país com uma assiduidade assustadora, jogando na lama, muitas vezes de forma injusta, o nome e o conceito de pessoas probas. O poder dado aos investigadores e as medidas que vêm tomando levam à ideia de que se está fazendo justiça, quando, em inúmeros casos, o que ocorre é uma perigosa inversão dos ritos legais, que condena ao opróbrio público quem ainda não tem culpa consolidada”. Como se o jornalismo não ajudasse a espalhar a lama. No dia seguinte, o mesmo jornal publicou outro editorial – “Excesso e prepotência”  – em que praticamente se isenta de qualquer participação no circo armado: “A verdade é que a PF, ao convocar uma coletiva, dá sempre o tom da operação. Cabe à mídia registrar e divulgar os fatos, com isenção”. Mas o leitor mais atento poderá se perguntar: os jornais devem sempre seguir “o tom da operação” da PF?

No mesmo dia, o concorrente Diário Catarinense publicou o editorial “Comoção, cautela e reflexão”, em que simplesmente subestima o leitor. Menciona que as últimas homenagens a Cancellier enalteceram sua trajetória, expressaram pesar e trouxeram “manifestações em tom de crítica e de indignação endereçadas principalmente às instituições envolvidas na Operação Ouvidos Moucos”. Em nenhum momento, o jornal reconheceu que parte das críticas foi endereçada à própria imprensa.

De um lado temos a justiça e a polícia que não se permitem revisar padrões e procedimentos. De outro, temos uma imprensa que não reconhece sua parcela na pirotecnia, que tarda em fazer retificações e que não resiste a um press-release da PF…

O que fazer, então?

O jornalismo não apenas errou no caso Cancellier. Também houve acertos, e eles se deram sobretudo na forma de reportagens. A reportagem é um gênero nobre na área. Vale-se de um texto mais longo ou de uma duração maior quando é na TV ou no rádio. Apoia-se em mais fontes de informação, e parece mais consistente. A notícia é um gênero ordinário. Ela é essencialmente factual, o que significa dizer que existe para anunciar o acontecimento, para estabelecer o primeiro contato entre o público e o fato acontecido. Um fator importante distancia a reportagem da notícia: o tempo. Repórteres têm mais tempo (não muito, é verdade) para se dedicar às reportagens, já que as notícias são produzidas no calor da hora, a quente. Essa diferença costuma se apresentar como uma vantagem adicional para aqueles que se devotam às reportagens. Sobre o caso Cancellier, já se pode colher bons materiais em El País, no Diário do Centro do Mundo ou mesmo no Diário Catarinense. A cobertura factual também teve seus acertos, mas é perceptível que os profissionais envolvidos tiveram grandes dificuldades para fazer seu trabalho.

Conversei com vários jornalistas de meios e cidades diferentes nesta semana. Todos eles mostraram-se muito angustiados com suas condições de trabalho. Uma profissional que edita materiais online questionou: como evitar erros quando estamos lidando com o episódio ainda incompleto? Outro colega perguntou: como podemos acertar o tom se nosso material é constantemente modificado por editores que não ajudaram a apurar as informações mas pensam saber mais do que os repórteres? Outro ainda se queixou: você não está culpando demais a imprensa quando ela é a única a buscar informações e a se preocupar com tudo isso?

Este texto está sendo publicado uma semana após a morte trágica do reitor da UFSC e não foi preciso esperar todo esse tempo para verificarmos que a sanha justiceira permanece, que exposição descuidada é um padrão da mídia, e que ela tem pouca ou nenhuma disposição para mudar seus procedimentos. Ao mesmo tempo, vemos profissionais cerceados e insatisfeitos com o resultado de seu trabalho. A domesticação da mídia pelos poderosos prejudica o jornalismo e a sociedade. A reverência às autoridades distancia o público da verdade. A mídia que se permite ser refém da justiça e da polícia tende a alimentar uma sociedade sanguinária, punitiva e violenta. O respeito à honra, o cuidado com a exposição desnecessária e o apego a altos padrões éticos ajudam as redações a revisar suas rotinas e a aperfeiçoar as práticas jornalísticas.

Erros acontecem, mas retificações e retratações podem ser publicadas. Coberturas também podem ter suas rotas ajustadas ao longo do tempo. Jornalistas podem ter no seu trabalho ordinário e cotidiano as mesmas preocupações e exigências de qualidade das reportagens especiais.

Nas redes sociais, o caso Cancellier foi comparado ao episódio da Escola Base, considerado o maior erro da imprensa brasileira e que produziu um linchamento social de seis pessoas, inocentes, mas acusadas de crimes que nunca aconteceram. O caso Cancellier não é uma nova Escola Base. Tem semelhanças, é verdade. Afinal, no triste evento da década de 1990, as informações iniciais partiram das autoridades policiais, e a mídia adotou um comportamento de manada para ajudar a destruir a reputação e a vida de inocentes. Mas o caso Cancellier tem contexto próprio, sendo necessário avaliar seus condicionantes. Que os casos possam ajudar o jornalismo e a sociedade a buscar soluções práticas que impeçam outras histórias semelhantes.

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